Conflito como conceito operativo em diferentes domínios. Considerações genéricas.

Margarida Penetra Prieto

Introdução

Este texto pretende esclarecer o que é a palavra “conflito” significa para o senso comum e não se alonga em nenhuma área específica. Por isso tem um tom superficial e explicativo evitando definições demasiado contextualizadas. Começa, por isso, com a mais básica das investigações: o que significa esta palavra e como a explicam os dicionários?

1. Algumas definições para o termo “conflito”

“Conflito” é um termo registado em 1535 informa o Houaiss, Dicionário da Língua Portuguesa. Segundo este, os significados de “conflito” podem-se definir em termos jurídicos, psicológicos, políticos, entre outros. Referenciando a informação deste dicionário, no senso comum, entende-se que um conflito é uma profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes e, por extensão, pode identificar um choque ou um enfrentamento (por exemplo, na natureza, o choque do mar contra os rochedos) e pode referir-se a uma discussão acalorada, uma altercação. Por analogia, o conflito é o acto ou efeito de divergência acentuada ou oposição entre duas coisas.

No domínio da psicologia, levantam-se duas hipóteses: 1) a do indivíduo em conflito consigo, identificado como conflito intrapsíquico, mental ou psíquico e 2) a do indivíduo em conflito com os outros.

No primeiro caso – o indivíduo em conflito consigo –, as teorias behavioristas definem o conflito como o estado provocado pela coexistência de dois estímulos que disparam reacções mutuamente excludentes, ou seja, o termo conflito identifica a ocorrência concomitante de exigências, impulsos ou tendências antagónicas que se eliminam uma à outra, e o estado (manifesto ou latente) daí decorrente. Estes estímulos criam hesitação, confusão, depressão, dúvida, ou seja, criam sofrimento e tensão nos indivíduos. Estar em conflito, neste caso, é estar em desacordo consigo, em oposição, ou seja, é estar mentalmente intranquilo em decorrência de problemas de ambivalência, na existência de impulsos ou interesses opostos.

No segundo caso – o indivíduo em conflito com os outros –, são diversas as possibilidades. Por exemplo, o campo da política envolve sempre a luta pelas fronteiras, luta que resulta de questões jurídicas sobre propriedade, quer entre famílias – com as heranças , quer entre países onde as consequências são os conflitos armados, as guerras entre nações onde é utilizado arsenal bélico. Num mesmo território político (um país) existe a possibilidade do conflito de leis, ou seja, a divergência que pode dar-se entre as leis antigas e as novas desse mesmo país (conflito de tempo) ou entre as leis desse país e as de países diferentes (conflito no espaço).

No campo administrativo-jurídico pode acontecer o conflito de atribuições que se define pelo impasse que se dá entre duas autoridades administrativas de órgãos da mesma natureza que se julgam (in)competentes para o conhecimento de uma dada matéria ou questão; ou ainda o conflito de competências que manifesta ou pela discordância a respeito da jurisdição contenciosa entre orgãos de administração governamental e entidades jurídicas ou como conflito suscitado pela parte interessada, pelo juiz ou pelo ministério público, quando dois ou mais juízes se declaram competentes (conflito positivo) ou incompetentes (conflito negativo), ou quando entre dois ou mais juízes surge a controvérsia acerca da reunião ou separação de processos.

Ainda no domínio jurídico pode-se distinguir o conflito de direitos como concorrência de direitos antagónicos de dois ou mais indivíduos, que obriga a que nenhum deles tenha exercício pleno ou exerça gozo exclusivo do direito do qual se arroga titular. Neste caso, trata-se de uma colisão de direitos. O conflito de interesses pode sistematizar três situações: (1) o choque entre interesses pessoais e as obrigações precípuas de um indivíduo que exerce um cargo de confiança; (2) aquele que ocorre quando dois ou mais indivíduos têm interesse sobre um mesmo objeto, o que pode resultar numa ação judicial entre pessoas de direito privado; (3) contestação recíproca entre indivíduos e/ou nações que aspiram a uma mesma vantagem ou disputam direitos antagónicos; demanda, diferendo.

Existe ainda o conflito de jurisdição definido pela dissensão que ocorre entre duas ou mais autoridades da administração governamental (conflito negativo), ou entre dois ou mais tribunais de diferente espécie quando todos se julgam competentes para deliberar sobre determinado caso (conflito positivo) ou declinam juntos o poder de conhecer da mesma questão (conflito prejudicado). À discordância de opinião entre autoridades jurídicas, tribunais, jurisconsultos, etc., chama-se conflito de jurisprudência. À oposição de interesses por um direito, entre autoridades chama-se conflito de poder. À oposição ou contradição entre as provas apresentadas em juízo pelas partes litigantes chama-se conflito de provas. Ao dissídio entre empregado e empregador por inadimplência (falta de cumprimento de uma obrigação) contratual ou regulamentar, por desacordo de interesses, etc., chama-se conflito do trabalho.

No domínio administrativo, o conflito refere-se à contestação recíproca entre duas autoridades pelo mesmo direito, competência ou atribuição.

No domínio das artes, precisamente através da dramatização teatral, o conflito é o facto em torno do qual se estruturam as acções da peça e que consiste no choque de interesses, opiniões, etc., entre duas personagens ou entre o protagonista e forças externas.

Uma pesquisa etimológica mostra que o termo conflito deriva do latim “conflictus” que significa choque, embate, confronto, luta, encontro. Está relacionado com o termo latino “confligére” que significa combater, lutar, pelejar. O sinónimo ou variante de “conflito” é combate, desinteligência e rebelião.

Continuando o que genericamente quer dizer conflito, encontramos significações distintas: 1) luta ou combate, 2) confronto de elementos ou de sentimentos contrários que se opõem; antagonismo, conflagração, discórdia, luta, oposição: conflito de interesses, entre pais e filhos, entre jovens e adultos, conflitos sociais; 3) ruptura, separação, sisão conflito, guerrilha; acção simultânea de motivações incompatíveis: 4) conflito afectivo, contestação entre duas forças que se disputam por um direito e que resultam numa crise e/ou numa guerra; 5) coincidência ou acaso de leis, textos ou princípios que se contradizem e, por isso, não podem ser aplicados.

Em termos sociológicos, desde a antiguidade que se detectam duas formas separadas de conflito na sociedade, a saber: como fenómeno patológico, ou seja, como sintoma de uma doença no corpo social (defendido por Emile Durkheim e Talcott Parsons); e como forma normal de interacção social que contribui para ora para a manutenção ora para a mudança, ora para a estabilidade ora para o desenvolvimento geral das entidades sociais (forma defendida por Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca sociólogos herdeiros do pensamento de Hegel, Marx e Drawin).

Por seu lado, no campo da psicologia, Freud propõe o conceito de conflito de acordo com o seguinte quadro:

Conflito – cooperação O indivíduo na relação com a sociedade
Conflito – ansiedade O indivíduo na presença simultânea de motivos opostos
Id Inter-relação dos impulsos biológicos
Super-ego Ordens e proibições sociais
Ego Maneira de satisfazer o primeiro (impulsos biológicos) enquanto regulamos o segundo (ordens e proibições)

Ainda no contexto do conflito, Freud identifica a “repressão” como mecanismo de defesa de uma situação traumática e o “deslocamento” como reacção a uma situação, mas num contexto diferente.

2. A resolução do conflito é o consenso, o acordo ou a paz (sempre?)

O conflito é um conceito operativo extremamente útil no domínio das artes, e sobretudo na literatura. A estrutura narrativa ficcional segue sempre uma estrutura de causa-consequência ou causa-efeito ou, ainda, acção-reação e faz-se assim: inicia-se com uma apresentação (de contexto e de personagens), desenvolve-se em direcção ao nó narrativo que se resolve através do seu desenlace. Com a literatura ficcional apresenta-se o conflito sob a forma de nó narrativo. Este conflito pode ser um dilema, uma situação de suspense, de tensão; se marca um impasse (no nó da intriga), de imediato abre a múltiplas opções a que o desenlace dá forma. Não se trata apenas de uma estrutura de princípio, meio e fim ou de introdução, desenvolvimento e conclusão. Justamente, na Poética, Aristóteles explica claramente que a história que é contada e posta em cena deve emocionar o espectador e, para isso, este tem de se identificar com um dos personagens. Esta identificação dá-se através da empatia – o pathos – que vem por via da identificação, e é fundamental para tornar a história da ordem do vivido, da ordem da experiência. É aqui que o conflito se pode manifestar enquanto conceito: é que, em cada narrativa sobre um mesmo assunto (uma guerra, por exemplo), os conflitos têm diferentes desenlaces ou desfechos e ao assistir aos vários filmes sobre o mesmo assunto, aqueles nos contam as mesmas histórias de diferentes maneiras, descobrimos as opções e as possibilidades de resolução de conflitos similares. Podemos fazer mais: podemos descobrir outras formas de resolução desses conflitos narrados e usar o nosso trabalho para mostrar as nossas soluções para o(s) conflito(s).

Pode dizer-se que as primeiras formas de conflito apresentadas pela narrativa ficcional se colocam 1) entre um personagem e a natureza; 2) entre um personagem e os seus deuses; 3) entre um personagem apresentado como herói e os antagonismos que deve superar; 4) entre dois personagens que se opõem ou antagonizam; 5) o personagem consigo mesmo.

Chama-se conflito externo quando o personagem enfrenta outros personagens ou situações que lhe são hostis e alheias. Neste caso, se o conflito é relativo à sociedade ou a elementos dessa sociedade chama-se conflito social; se for um antagonismo em relação à natureza e aos seus elementos chama-se conflito elemental; se for em relação às divindades ou ao destino chama-se conflito transcendental; se for relativamente a ideias, filosofias, ou a qualquer ponto de vista ético trata-se de um conflito moral. Chama-se conflito interno ou psicológico quando o personagem entra em conflito consigo mesmo.

Como existe excepções para todas as regras, também na literatura nem todo o conflito tem resolução, ou seja, nem todo o nó da intriga leva a um desenlace ou a um desfecho, criando situações sem saída, irresolúveis. Neste caso particular e atípico, a narrativa é deixada em aberto.

Em termos puramente humanos, pode afirmar-se que existem 6 tipos de conflito:

  • O Homem na sua relação consigo próprio
  • O Homem com o outro (ego versus alter)
  • O Homem com a sociedade
  • O Homem com a natureza
  • O Homem e a tecnologia (máquinas). Neste ponto podemos ainda estratificas a relação do homem com o trabalho e identificar 3 tipos de conflito: a) relativamente à tarefa que tem de desempenhar, b) relativamente à relação com os colegas, c) relativamente ao reconhecimento do seu valor como funcionário.
  • O Homem e o seu destino (os seus deuses, a transcendência, o sobrenatural). A relação com a morte, com a doença (física ou mental).

Esta lista confirma o que foi identificado nos textos ficcionais narrativos (e na arte).

Segundo documentação redigida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, os conflitos podem ser positivos ou negativos consoante a forma como os resolvemos e como os encaramos. As resoluções pacíficas e positivas procuram o diálogo que conduz ao acordo; as resoluções não-pacíficas procuram a violência como estratégia e visam o prejuízo ou a anulação do outro e, como efeito psico-emocional conduzem à depressão e ao suicídio. Nas sociedades abertas e pluralistas é normal que todo o conflito tenha consequências estabilizadoras e por isso são considerados positivos; por outro lado, nas sociedades rígidas, os conflitos tendem a ser suprimidos pela violência dos poderes instituídos, e a regressar como desagregadores ou seja como negativos. Assim a paz social e a ordem antagonizam-se com o conflito e com a hostilidade.

Conclusão

Compreende-se que a palavra “conflito” tem aplicações em muitas áreas do conhecimento, desde o direito, à política, desde a medicina à arte. Compreende-se que define situações estruturais na sociedade humana e que estão umbilicalmente relacionadas aos que cada Homem, como indivíduo, é capaz de ser e fazer no campo da moral, da ética e da estética: que valores o regulam, que ambições o movem, que crenças o sustentam.


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