Os objetos refletidos estão mais próximos do que parecem

João Braz
- Universidade Lusófona
- joao.braz@ulusofona.pt
A paisagem é um sem fim de evocações.
Álvaro Domingues
Perto de Caria encontramos uma anta que quase parece verdadeira: uma réplica de um monumento megalítico situado no centro de uma rotunda, na estrada N18-3, a dois quilómetros desta freguesia do concelho de Belmonte, na região Centro, junto à encosta leste da Serra da Estrela. Perto da anta, uma placa assinada pelo presidente da Câmara não deixa dúvidas: trata-se de uma réplica “por influência”, construída com pedras em tudo semelhantes às de outra anta existente na região. Todavia, quem chega de automóvel e se depara com este objeto, sem tempo de ler a placa, não pode deixar de se interrogar sobre a sua autenticidade e sobre o que faz uma “construção pré-histórica”, ligada a rituais coletivos fúnebres de há cinco mil anos, no meio de uma via rodoviária.
As antas e outras estruturas megalíticas, como os menires, isolados ou dispostos em círculos — cromeleques, simbolizam o início da ação da humanidade na marcação e transformação da paisagem, na criação de uma identidade e memória coletivas devidamente situadas.

À semelhança da réplica da anta de Caria, são inúmeros os objetos instalados nas rotundas rodoviárias de Portugal, dispostos com o objetivo de inscrever uma mensagem na paisagem, sobretudo dirigida a quem passa de automóvel. Nestes objetos podemos encontrar ecos — influência, diz a placa de inauguração — de temas e naturezas tão diversas como atividades típicas da região, homenagens a figuras locais, acontecimentos históricos e profissões, aspetos da memória regional coletiva, referência a eventos religiosos, desportos, evocações gastronómicas, réplicas de formas de Arte e vida “primitivas” ou expressões artísticas contemporâneas. Este é um fenómeno que encontramos por todo o país e que levanta múltiplas interrogações.
Qual a razão da escolha das placas centrais das rotundas, dispositivos funcionais de regulação de tráfego, como locais privilegiados de valorização da paisagem urbana e de criação de identidade e simbolismo, muitas vezes à falta de outro espaço público? Que significados tem a disseminação pelo território desta vontade de marcação simbólica e de representação identitária? — Serão estas intervenções, tal como a da anta, relevantes pelo facto de representarem uma pulsão primordial de inscrição no território e na memória?
Ao viajar pelo país e circular constantemente por entre estes objetos não podemos deixar de pensar na contradição aparente em querer inscrever uma marca identitária num local de passagem rodoviária, onde viajantes em trânsito atravessam, por breves momentos, um espaço progressivamente genérico, sem identidade reconhecível, desprovido de relacionamento social e de história. — Será possível um território transformar-se num local habitado através destes objetos?

Não há em Portugal uma intervenção em rotundas que leve tão à letra a ideia da representação da localidade como a que encontramos na EN256, à entrada de Mourão, na margem do Alqueva. Uma reprodução à escala reduzida do castelo medieval da localidade, reconstruído e restaurado, está disposta no centro da rotunda como uma maquete. Alguns viajantes e turistas ali estacionam e fotografam-se por entre as muralhas e torres do castelo em miniatura, que se assemelham às reproduções de edifícios “históricos” do “Portugal dos pequenitos” - inaugurado em 1940 e idealizado pelo Estado Novo como um parque temático lúdico e pedagógico para dar a conhecer às crianças uma visão idílica do património do império português em miniatura. A reprodução do castelo ocupa toda a placa central da rotunda. À sua volta apenas azinheiras, plantações intensivas de olival e, ao fundo, bem mais pequeno do que a miniatura, podemos ver o castelo original.
Quem criou este local parecia pretender dar corpo à alma do lugar e apresentá-lo a quem passa, disposto numa rotunda, parecendo querer dizer: “Isto é Mourão. Isto somos nós.” Genius loci - locução latina que significa o espírito do lugar, usada por diversos autores em variadas áreas, assume-se quase invariavelmente como um conjunto de diferentes fatores que descrevem um lugar, sendo estes responsáveis pela sua identidade e pelo espírito que aí ressoa. Em termos arquitetónicos, manifesta-se como afirmação de uma perspetiva fenomenológica do ambiente e da conexão entre o lugar e a identidade. Genius loci diz portanto respeito ao conjunto de características socioculturais, arquitetónicas, artísticas e ambientais que definem um espaço, um território, uma vila ou cidade. É ele que agrega em si o caráter do lugar.
Independentemente do termo utilizado, génio de lugar ou espírito do lugar, este é parte integrante da existência e, de acordo com o ambiente envolvente, o lugar adquire uma identidade ou espírito próprio.
”Genius loci” é um conceito romano. De acordo com as crenças romanas qualquer ser independente tem o seu “genius”, o seu espírito guardião. Este espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanhando-os do nascimento até à morte e determina o seu caráter ou essência” (Schultz, 1984, p.18)
Atualmente, devido às grandes alterações de mobilidade, tecnológicas e de modos de vida, ocorridas nas cidades, localidades e regiões, que estimularam novos ritmos, novas maneiras de pensar e sentir, um novo sentido e significado de lugar surge associado a uma forma de pensar coletiva que procura, cada vez mais, as suas origens e a sua história, regressando a um passado distante, regresso esse provocado pela falta de identidade sentida num mundo cada vez mais globalizado.
Em Mourão, o castelo que serviu como fortaleza para guardar os limites do território tem agora uma nova função a partir da sua reprodução na rotunda: ser o guardião da alma da vila, da memória e do espírito dos mouranenses, que nele se reveem.
A 9 de Junho de 2014, na véspera da comemoração do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, inaugurou a rotunda dos 5 éfes na cidade da Guarda, no local que antes era conhecido como a rotunda da Ti Jaquina. A população tinha atribuído este nome não oficial ao local, devido ao quiosque que nele existia há 36 anos, propriedade de Joaquina Escada, que se viu obrigada a fechar o negócio com a reconversão da rotunda. O quiosque foi substituído por uma peça escultórica em betão e metal onde estão recortados os nomes dos cinco adjetivos que a comunidade local apresenta como características do espírito daquela cidade: forte, farta, fria, fiel e formosa.
A explicação para esta classificação é comumente atribuída a uma mistura mistificada de motivos geográficos, históricos e estéticos: forte porque as muralhas, a torre, e a posição geográfica do castelo testemunham a sua força; farta graças à fertilidade e abundância do vale do Mondego; fria por se situar junto à Serra da Estrela; fiel porque o Alcaide-Mor do Castelo se negou a entregar as chaves da cidade ao Rei de Castela durante a crise de 1383-85; formosa pela sua inata e singular beleza.

A relação das populações com o lugar forma-se através da identificação e do reconhecimento. Cada lugar é único, contém uma história que, com as suas qualidades próprias e a intervenção humana, define a sua identidade. O lugar permite-nos construir vida, permite-nos habitar e perpetuar a nossa identidade, isto é, “o lugar é a concreta manifestação do habitar humano” (Schultz, 1984: 6).
Um espaço habitado que ganha significado e valor pela presença humana enquanto habitante físico e utilizador do lugar.
O Genius loci é formado por unidades concretas (edifícios, paisagens, objetos) e unidades abstratas (memórias, rituais, comemorações, histórias), que em conjunto concorrem para criar um lugar e conceder-lhe um espírito. O Genius loci está portanto em constante reconstrução devido à permanente tensão entre a necessidade de mudança e a continuidade das comunidades, variando ao longo do tempo e de cultura para cultura em consonância com as suas memórias.
A substituição do quiosque da Ti Jaquina por uma homenagem às cinco “virtudes” da cidade da Guarda é um exemplo claro da mutação e redefinição do Genius loci. Uma mudança feita pela força institucional que pretendeu assinalar no local a própria ideia “oficial” desse território e da sua comunidade, uma materialização simbólica da persona da Guarda. A ideia de lugar fortalece-se através da autenticidade e do caráter que lhe são conferidos. Estas qualidades podem desenvolver-se através dos significados simbólicos que se atribuem ao lugar, como o seu uso como edificador de memória. Quanto mais o homem se identifica com o lugar, mais se apropria dele. Um espaço só se torna um lugar porque alguém lhe dá uso e vida.
O lugar do espaço do quiosque da Ti Jaquina era habitado de forma muito diferente do novo lugar da rotunda dos 5 éfes, mas ambos são espelho da relação total homem-lugar, que corresponde à necessidade humana de fixar-se num lugar, tornando-o habitável e sentindo-se parte dele. O homem só habita um lugar onde e quando o ambiente e o espaço têm algum significado, onde o lugar tem caráter, mesmo quando esse caráter é uma memória de um lugar antigo ou um monumento erguido às qualidades da cidade.
A placa da inauguração do Presidente da República entretanto desapareceu, mas já ninguém precisa dela para reconhecer neste lugar a cidade “Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa”.

Já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, de que nada sabemos com certeza - nem sequer que é falso.
Jorge Luís Borges - O livro dos seres imaginários
Em Setembro de 1931, realizou-se em Portugal o “5.º Congresso Internacional da Crítica” que reuniu ilustres vultos mundiais da crítica de música, teatro e cinema, numa iniciativa promovida por António Ferro, Presidente da Associação Portuguesa da Crítica. O compositor francês Darius Milhaud, na sua autobiografia Notes sans musique, descreve a surpresa sentida ao ver num arraial popular “espontâneo”, em Alfama, a frase “Viva a Crítica!” inscrita em várias faixas. Milhaud refere que nunca na sua vida tinha visto ou voltaria a ver tamanho elogio aos críticos.
É neste contexto que o galo de Barcelos é apresentado pela primeira vez como um símbolo de Portugal e oferecido aos participantes do congresso. A utilização do galo de Barcelos como símbolo nacional é uma criação de António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional.
Ferro foi o grande objetificador do Estado Novo, criador das marchas populares, dos ranchos folclóricos e responsável pela disseminação de propaganda política através de um sem número de atividades culturais durante as décadas de 30 e 40 do século XX. Ele compreendeu bem a importância da utilização da cultura popular para usos identitários, tal como havia feito Goebbels na Alemanha nazi, assim como a utilização do passado histórico e das “tradições inventadas” como validadoras de atuações políticas, de vínculos de autoridade e como promotoras da harmonia social. Principal dinamizador das políticas culturais do Estado Novo “Ferro planeia e manda executar o marketing político no Portugal salazarista com o mesmo empenho com que Goebbels, o chefe todo-poderoso do Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda, o faz na Alemanha”, refere Orlando Raimundo (2015: 176).
As tradições subsistem através da manutenção de uma linha contínua entre passado e presente, ao longo de gerações, e vão sendo (re)feitas e recriadas, não havendo um corte absoluto entre tempos passados, presentes e futuros, dado que a tradição abarca um conjunto de componentes transmitidos de geração em geração, dotados de um peso simbólico com tendência a repetirem-se. A tradição pode ser apontada como um modo de garantir a estabilidade identitária, apoiada em arquétipos, tais arquétipos tanto podem ser acontecimentos inventados como reais ou recriados. A tradição inventada é uma criação interligada a um dado passado histórico que sofreu alterações num tempo posterior e forma com esse passado uma continuidade artificial. Inventar tradições é, portanto, uma forma de legitimar e ritualizar o passado mesmo que seja apenas pelo desejo de repetição. Não obstante fundamentarem-se na preservação de uma natureza fixa, tradições, costumes, localidades e Homem não permanecem constantes ad aeternum.
“O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as tradições realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado do tempo (...) por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras, tácita ou abertamente aceites, tais práticas, de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível tenta-se estabelecer uma continuidade com um passado histórico apropriado.” (Hobsbawm, 1997, p.9)
Deste modo, à luz de A Invenção da Tradição proposta por Hobsbawm poderá compreender-se melhor a grande importância que assumiam para António Ferro tais tradições. Elas viabilizam a criação de um espírito de comunidade com um passado comum, mantendo uma identidade e, deste modo, reforçando a coesão social e o poder legitimador da força autoritária de Estado Novo e de Salazar, não como um ditador, mas como um homem simples, nacionalista, que se constituiu como o garante da defesa e preservação dos “valores tradicionais”. Compartilhar uma herança cultural formada por tradições é ser parte de uma família, de uma comunidade, de uma nação.

A peça escultórica intitulada “O Conquistador”, encomendada pela Câmara Municipal do Seixal, em 2007, ao artista Jorge Pé Curto, situada na rotunda da Av. D. Afonso Henriques, em Corroios, é um exemplo presente da utilização da tradição inventada do galo de Barcelos como símbolo nacional criado por Ferro e da força com que estas tradições têm atravessado gerações, normalizando-se nas sociedades.
As tradições alteram-se constantemente, mas o poder de adaptação e a força das tradições não se devem confundir com a invenção das tradições. A invenção surge quando a tradição já perdeu a sua presença, a sua prática e a sua força: “D. Afonso Henriques montado no galo de Barcelos foi a fórmula encontrada para realçar o espírito guerreiro e a sua liderança face às aspirações independentistas de uma região em que o Galo de Barcelos surge como símbolo.” (Elementos escultóricos no Parque Luso, 2007). É deste modo que o criador apresenta a sua obra colocada numa rotunda, em Corroios, junto a uma zona de moradias e a uma superfície comercial. Se as duas figuras da peça são facilmente reconhecíveis, o mais extraordinário e surpreendente é a solução encontrada para celebrar a fundação da nação: o primeiro rei de Portugal do século XII montado na figura do galo de Barcelos, uma peça de artesanato da região onde começou o reino que daria origem a Portugal.
O primeiro Rei de Portugal montado num símbolo do país criado pelo Estado Novo, numa peça encomendada por uma câmara municipal com uma direção eleita pelo Partido Comunista Português, colocada numa rotunda, na periferia de Corroios, por muito absurdo que pareça, mostra bem como a etno genealogia do Estado Novo continua a estar viva na representação, na iconografia e nos símbolos nacionais e regionais por Portugal inteiro.

Na entrada norte de Arraiolos, na N370, os automobilistas param nas bermas da estrada e vão fotografar-se no centro da rotunda. O motivo: uma cadeira gigante pintada de vermelho.
Esta peça reproduz, em grande escala, as cadeiras alentejanas construídas artesanalmente em pinho, pintadas à mão com cores vivas e com buinho (varas de vimeiro) entrelaçado.
Tal objetificação de elementos “típicos” locais, ampliados a uma escala que os torna visíveis a grande distância, é muito comum neste tipo de Arte pública. São elementos que têm como objetivo apresentar uma “identidade” local, que procuram representar de forma simbólica e direta. Esta cadeira faz parte do conjunto de elementos de homenagem aos tapetes de lã de Arraiolos. Em cima da cadeira estão um novelo de lã estilizado e uma tesoura. A palavra “Arraiolos” surge no centro da rotunda, escrita de uma forma que simula o ponto de bordado característico destes tapetes. Estes elementos surgem em homenagem “ao nosso artesanato e às nossas tapeteiras” disse Sílvia Pinto, Presidente da Câmara Municipal de Arraiolos, aquando da inauguração da rotunda, em Junho de 2017. (Albardeiro, 2017)
A objetificação da cultura popular patente neste conjunto de elementos da rotunda de Arraiolos é uma característica principal do fenómeno, mas também do desejo de invenção de tradições. Certos constituintes da cultura popular são alvo de uma escolha, de uma nova interpretação ou reelaboração e, mais tarde, devolvidos como objetos “típicos”.
Este processo foi alastrando pelo país ao longo do século XX originando tradições que se desenvolveram de forma articulada com outras atividades: formação de grupos folclóricos, museus locais, centros interpretativos, coleções, aparecimento de formas de artesanato local e emblematização de festas e rituais.
A cultura popular torna-se um signo por intermédio do qual a identidade de unidades como concelho ou região podem ser tematizados. Determinados fatores conduziram a esta situação: por um lado, o fortalecimento financeiro e o desenvolvimento do poder local, por outro, a pós-ruralização que causou perdas de rendimento outrora provenientes da agricultura, tornando-se as culturas locais, com o apoio dos fundos europeus, no recurso alternativo a fontes de rendimento. Este acontecimento está na base da multiplicação, revitalização e recuperação do “artesanato”, das festas tradicionais locais e do crescimento do turismo local.
“Acontece que a cultura popular-contrariamente à visão dos seus objectificadores - é uma matéria essencialmente plástica. Imobilizada para melhor produzir identidades demarcadas, ela sempre foi rebelde a processos de taxonomia. A sua autenticidade-no sentido que os românticos emprestaram a esta palavra - foi sempre duvidosa. Nela houve sempre misturas entre o povo e as elites, entre campos e cidades, entre tradições culturais distintas. Mesmo nos casos em que parece haver uma imobilidade do popular, ela é largamente ilusória.” (Leal, 2010, p.136)
O tamanho e impacto visual da cadeira na rotunda de Arraiolos, assim como a paisagem com o castelo de Arraiolos em fundo, tornam-na muito “instagramável” ou seja, um cenário usado constantemente para os automobilistas fotografarem ou se fotografarem em modo de autorretrato ou selfie, publicado em redes sociais como o Instagram juntamente com a palavra-chave ou hashtag: “#arraiolos”. Cumpre-se assim, neste caso, pela partilha e identificação do local nas redes sociais, um dos objetivos principais do desenvolvimento e da utilização das tradições inventadas pelas autarquias e comunidades locais: a valorização turística do território através da divulgação da reinvenção da identidade local e regional.
Um dos instrumentos desta afirmação local e da prática de branding identitário, utilizado frequentemente nas peças nas rotundas, é a celebração e promoção de produtos locais de que são exemplo o “maior assador de castanhas do mundo” na rotunda em Vinhais, o feijão-frade na rotunda em Lardosa ou a rotunda da cadeira em Paços de Ferreira, a “capital do móvel”.
As tradições inventadas são costumes de índole simbólica, controlados por regras ou espontâneas, que objetivam instituir certos valores e condutas, aspirando urdir uma continuidade em relação ao passado. São representadas nas rotundas como inspiração de uma Arte “popular”. Estes objetos artísticos simulam uma identidade e procuram representar o que não existe: uma memória, uma recriação, uma fantasia, uma aspiração.
Tradições inventadas continuam a ser celebradas e vivenciadas como verdadeiras, fazem parte do imaginário e da memória coletivas e representam a idealização de uma identidade local e nacional. Um País encenado e reinventado, uma identidade nacional recriada através de símbolos também eles inventados e reinventados, um povo esteticizado que transmitia uma imagem idílica de Portugal: uma “aldeia da roupa branca”. Um paraíso perdido e sonhado.

“Repetimo-nos em círculo fechado, passamos a vida a repetir pessoas, locais e situações, e eu creio que é por uma afirmação de identidade, não vejo outro motivo. Procuramos sinais de grupo onde quer que a gente esteja… procuramos uma identificação com o lugar, é o que isso quer dizer. Segurança. A identificação é também segurança, quer-me parecer, e talvez seja por isso que nos repetimos socialmente com tanta persistência.” (Cardoso Pires, 1987, p.44)
A vontade de recuperar uma identidade “original”, de partilhar memórias e certezas perdidas em redor da identidade, é uma forma de resistir aos efeitos da globalização, que torna progressivamente esbatidas as caraterísticas próprias das cidades tornando-as na “cidade genérica” definida por Koolhaas, onde cada vez mais há menos espaço para memória e identidade locais. As rotundas são um palco muito popular para afirmar essa singularidade local constituída por características territoriais e sociais que resistem ao processo global de homogeneizar as cidades.
A ilha central da rotunda torna-se inevitavelmente num ponto de referência, num padrão de uma identidade local que é frequentemente resultado de simplificações, reinvenções e mistificações. Uma tentativa de síntese pictórica do território e das populações através da associação de alguns símbolos históricos, culturais e atividades económicas. A identidade local reflete-se nas rotundas como algo entre um passado idealizado e um futuro desejado. A construção deste espectro identitário é principalmente resultado de uma ação política local e regional. A partir desta ação escolhemos coletivamente o modo como somos representados e reconhecidos como comunidade e, simultaneamente, o modo como afirmamos a nós próprios quem somos.Estes processos que podem ser observados em rotundas por todo o país e este permanente desejo de relembrar uma origem parece estar ligado à constante procura de pertença e seguridade a uma qualquer identidade original, porém, a identidade é um movimento fluido em permanente em mudança e tentar fixá-la tem como resultado apenas um vestígio, um espectro dessa identidade tão desejada.
Referências:
- Domingues, A. (2009). A rua da estrada.Dafne Editora.
- Cardoso Pires, J. (1987). Alexandra Alpha. Publicações Dom Quixote. CVF
- Quadros, A. (1963). António ferro (A. Quadros, Org.). Edições Panorama.
- Hobsbawm, E., & Ranger, T. (1997). A invenção das tradições. Paz E Terra.
- Koolhaas, R. (2014). Três textos sobre a cidade. Editorial Gustavo Gilli.
- Leal, J. (2010). Usos da cultura popular. In J. Neves (Org.), Como se faz um povo (pp. 125–137). Edições Tinta Da China.
- Raimundo, O. (2015). António Ferro o inventor do salazarismo: Mitos e falsificações do homem da propaganda da ditadura. Publicações Dom Quixote.
- Schulz, N. (1984). Genius loci: Towards a phenomenology of architecture. Rizzoli Editores.