Multi-task cinema, or a “whatever style”

november 2018

Paulo Viveiros

Making a blockbuster provides kind of an indulgence… we shot excessively, we are able to see big sets, use different film languages, putting shots together, weird lenses… Actually, it gives you more freedom. In a smaller movie you cannot afford that kind of freedom in creating images

Ang Lee

Este texto procura reflectir sobre o impacto que as novas tecnologias da imagem — desde o aparecimento do vídeo até à dependência do computador — têm tido nas gerações mais recentes do cinema, e o seu efeito na linguagem cinematográfica. O contexto de análise é o cinema norte-americano da indústria de Hollywood que, enquanto grande sistema de produção, absorve e transforma a novidade tecnológica de modo a alargar o seu raio de acção (indo de encontro à ideia de grande público e do fenómeno da globalização que perde as suas especificidades culturais). Do ponto de vista cinematográfico, as consequências imediatas desse impacto fazem-se sentir na linguagem cinematográfica com raiz na narrativa clássica, com particular incidência nos filmes de acção e de ficção científica; e, do ponto de vista cultural, como elas se manifestam precocemente nos filmes de escola feitos por uma geração com uma cultura visual marcada pelos music videos e pelo youtube.

São dois os aspectos que despertaram a análise que este texto pretende abordar: por um lado, a leveza, portabilidade e disseminação dos equipamentos de captura de imagem cada vez mais com melhor qualidade criaram um cinema mais imediato (por exemplo, o género independente mumblecore nos EUA), mas também mais light, com menos montagem, ou com montagem de planos avulsos que já não tem como base a montagem invisível da linguagem clássica; e por outro lado, a competência técnica de domínio de softwares de imagem característica das novas gerações, que aumentaram a presença dos efeitos visuais nos filmes, em particular da indústria, que se mostram como uma montra do high-tec, como atracções que interrompem a narrativa linear.

Apesar destas alterações significativas nas formas de produção e realização, há autores que admitem as mudanças de procedimentos, mas que elas não põem em causa o sistema de funcionamento da linguagem cinematográfica de Hollywood, como é o caso de David Bordwell que nos habituou a brilhantes análises do “estilo Hollywood”, desde o clássico ao contemporâneo [ * ]. Do “cinema excessivamente óbvio” da época clássica permanecem as histórias excessivamente previsíveis com os seus heróis, vilões e histórias de amor. Mas a maneira de contar isso mudou. O character-driven do clássico já não existe. As personagens com densidade psicológica desapareceram, talvez devido ao desaparecimento de uma geração de argumentistas que escrevia a partir de uma cultura literária [ * ]. Em sua substituição apareceu uma nova lógica de plot-driven [ * ], cujos responsáveis foram os realizadores da geração dos Movie Brats com a sua cultura cinéfila aplicada aos blockbusters que funcionaram como montra de exposição das novas tecnologias do cinema e da exploração dos efeitos visuais (por isso hoje as sequelas e prequelas de vários filmes são o modus operandi de Hollywood, porque a evolução da tecnologia é muito rápida). Finalmente, com a geração de David Fincher, com uma aprendizagem feita nos music vídeos e na publicidade e com as experiências influenciadas pelo vídeo de Oliver Stone (em Natural Born Killers), estamos perante um novo tipo de filmes visual effects-driven.

1. Problemas de sintaxe

A partir do momento em que se tornou claro a Hollywood que o seu sucesso junto do público teria de passar por contar histórias simples, lineares e sem ambiguidades para que os filmes fossem compreendidos — ou seja, para que o espectador apenas se concentrasse na história que era contada no ecrã através de um médium novo — teve que encontrar uma fórmula, uma sintaxe que tornasse transparente o dispositivo tecnológico de modo a não distrair o espectador com artifícios de estilo ou técnicos [ * ]. D. W. Griffith é unanimemente considerado o responsável por isso quando afirmava que queria contar histórias com o cinema da mesma forma que Dickens contava as suas através da escrita literária [ * ]. Griffith teve a oportunidade para testar essa fórmula durante os anos em que trabalho na american Biograph. Podemos resumir os seus procedimentos da seguinte forma: direcção de actores de modo a interagirem entre eles e não com a câmara, daí a proibição do olhar do actor para a câmara; a interdição do corte a meio de um movimento de câmara (que não era muito usado) para não interromper o movimento; a raridade dos extreme close-ups, para que o espectador tivesse sempre o bakground do plano para situar a cena espacialmente; a colocação da câmara no ângulo exacto para retirar a maior informação possível de uma cena. Tudo isto em conformidade com o continuity system fundado na ligação do movimento, gestos e olhares através dos cortes da montagem sempre com o intuito de não confundir o espectador e este compreender linear e cronologicamente a história no espaço e no tempo. Por exemplo, cada nova cena ou mudança de espaço de acção começa com um plano geral ou de conjunto (depende se é um plano exterior ou interior) para situar o espectador no espaço de acção e só a partir daqui a câmara se aproxima da acção das personagens até ao seu climax, voltando depois a afastar-se para deixar os planos respirarem. Nos diálogos filmados sequencialmente em campo/contra-campo usa-se os 180 degree line. Como o plano é uma forma de situar o actor e o espectador no espaço, ele herda o enquadramento de ponto de fuga central herdado da Renascença [ * ] e que se traduziu no cinema como a regra dos terços que divide o ecrã em nove partes, sendo a central a que é ocupada pelo herói/protagonista. Daqui resulta uma montagem invisível devido à linearidade dos cortes em raccord, mesmo quando vemos alternada ou paralelamente a linha de acção do herói e do vilão que ocorre até determinado momento da narrativa em espaços diferentes. O vilão está sempre num espaço diferente até que o herói o apanhe e aí as duas linhas de acção confluem no mesmo espaço. [ * ]

O sucesso deste sistema de funcionamento revela-se em todo o seu esplendor na animação dos estúdios da Disney, quando Walt Disney atinge a “ilusão da vida”, através do movimento desenhado que dá vida a personagens-animais de comportamento antropomorfizado. Portanto dentro de Hollywood, toda a subversão deste sistema só podia ser permitida na comédia [ * ], nos mundos imaginários da ficção científica (onde a narrativa pode abrandar para se fascinar com os cenários extraterrestres e fantásticos e com os efeitos especiais), ou em momentos feéricos dos musicais, onde a narrativa pára para dar lugar à atracção visual das coreografias (como em Busby Berkeley, por exemplo com os seus ousados movimentos de câmara).

Bordwell no seu livro de 2006, falou de uma intensificação do continuity system a partir das décadas de 1960 e 1970 [ * ]. Uma possível explicação para as transformações na linguagem clássica de Hollywood terá sido a concorrência da televisão e as suas imagens da guerra (primeiro da Coreia e do Vietname depois) e de situações reais, imagens de violência que escaparam aos censores militares e que contaminaram o imaginário do cinema — com a sua ficção romantizada e afastada do interesse mórbido que a televisão revelaria, justificando-se com as audiências —, em particular o western, o grande género norte-americano que era a história da formação do país. Nos westerns as cenas de acção transformaram-se em cenas de carnificina, de uma violência cada vez mais explícita, como em The Wild Bunch (1969) de Sam Peckinpah, na fronteira entre o western e o filme de guerra. Isso significou um empobrecimento das histórias e consequentemente da caracterização das personagens, que foram perdendo a sua densidade psicológica à medida que se tornaram figurantes de situações cujo objectivo era o espectáculo visual [ * ]. A ênfase posta na acção em vez de nas personagens transformaram os filmes mais plot-driven do que character-driven. A consequência imediata desta viragem pode ver-se no average shot lenght que encurta e o raccord é lesado na sua continuidade pelos recorrentes jump cuts. Mas a tecnologia vídeo, outra novidade da época, também afectou a linearidade e sequencialidade da sintaxe clássica, com os seus efeitos de sobreposição e incrustação e com o splitscreen a substituir muitas vezes a montagem alternada, paralela e o campo/contra-campo como nalgumas sequências de The Thomas Crown Affair (1968) de Bob Rafelson, por exemplo.

Apesar da intensificação do continuity system, mesmo hoje com a utilização cada vez mais frequente de single shots, que desconecta as relações espaciais entre personagens (e espectadores), David Bordwell admite que a linguagem não mudou apenas se extremou. Na teoria, o argumento de que Hollywood não podia abandonar um modelo que tanto sucesso teve é forte e válido, afinal as histórias continuam previsíveis [ * ], mas como à frente veremos, há exemplos em que não se pode falar de evolução de uma sintaxe, mas sim na sua transformação. Percebemos que para um sistema se manter activo tem que se adaptar a novas realidades, e os profissionais de cinema e o público do final da segunda década do século XXI não tiveram a mesma formação que os da Golden Age de Hollywood. Se a geração cinéfila dos 70’s conviveu com a televisão e se imaginarmos um espectador a ver em simultâneo um ecrã de cinema e o monitor de televisão ou que salte aleatoriamente de um para o outro, justifica-se que a intensified continuity possa ter splitscreens e jump cuts e possa derivar do continuity system. Hoje, as formas de atenção enfraqueceram pela multiplicação dos ecrãs de formato reduzido à nossa frente, mas também pelo seu conteúdo, em que o linear deu lugar ao flash de luz e cor e ao pop-up [ * ].

As características que Bordell aponta e que definem a intensified continuity são relevantes, e isto não está em causa. Bordwell é um brilhante analista, mas o que é perturbador na sua análise, insisto, é que afirma uma continuidade entre isto e a sintaxe clássica. A evolução de uma linguagem passa pelo aprimorar da sua sintaxe, não pela sua banalização ou abandono. Se Noel Carroll havia afirmado que a geração dos Movie Brats tinha adoptado a cinefilia como causa dos seus filmes e não a Bíblia e a literatura [ * ], hoje dificilmente conseguimos ver alguns vestígios da “maturidade do cinema” em filmes que vão invadindo as salas de cinema e o imaginário do público mais jovem. Em Novembro de 2014, numa masterclass no Dodge College da Stanford University, William Friedkin dizia num misto de humor e preocupação que os jovens realizadores de Hollywood passavam o tempo todo dos seus filmes à procura do plano. Afirmação pertinente de alguém contemporâneo da geração dos Movie Brats, mas que veio da televisão para o cinema.

Bordwell analisa a transformação — e não a ruptura, insisto — do continuity system através de quatro procedimentos que fundamentam a intensified continuity,cuja origem data desde o final dos 60’s. Mas o meu argumento é que se dos 60’s aos 90’s ainda se podem relacionar com o continuity system, a partir da segunda metade dos 90’s isso já é mais difícil. É como se os Movie Brats tivessem sido os maneiristas e a geração seguinte os barrocos, porque o que está em causa é o abandono de uma linguagem cinematográfica baseada na cultura visual adquirida na Renascença e da respectiva composição clássica. O primeiro exemplo é o fast cutting que faz diminuir a duração média de um plano, onde há cortes durante os movimentos de câmara que interrompem travellings e panorâmicas. Se recordarmos a brilhante montagem de Thelma Shoonmaker da cena final de Cape Fear (1996) de Scorsese, percebemos aí a intensified continuity e a energia e excitação da luta a bordo. Mas há uma justificação para isso, para que a câmara esteja em permanente frenesim porque o barco está desgovernado, logo a câmara não tem estabilidade. Por isso vemos os planos exteriores do barco levado pela corrente do rio. Mas em Requiem for a Dream (2000) de Daren Aranofsky, as anfetaminas da tia e as pedradas do sobrinho não justificam aquela montagem hip hop como o realizador lhe chamou. Pelo contrário, a paranóia causada pelo consumo de cocaína de Ray Liotta em Goodfellas (1990) durante as horas que antecedem a sua viagem justifica a montagem: a câmara reflecte a mente da personagem que imagina a perseguição do helicóptero. Com o aparecimento dos softwares de edição digital surgiu uma nova concepção de montagem cujo conceito aparente reside na sua facilidade técnica. Bordwell cita exemplarmente John McTiernan: “the AVID machine eliminated the last vestige of reluctance to cut, the cost of cutting[ * ]. O facto do digital editing ter facilitado o trabalho do film editor, parece ter ao mesmo tempo ter-lhe retirado o trabalho de pensar a linearidade da montagem. A segunda alteração está ligada ao uso de bipolar extremes of lens lenghts. A lente grande angular tornou-se numa moda, mesmo que distorça os limites do plano. Isso hoje já não é considerado bizarro, do mesmo modo que o foco feito no interior do plano que distorce e deforma, também faz parte de uma nova sintaxe. Como o tripé se tornou um acessório dispensável, o conceito de plano é cada vez mais vago. E se a câmara está em constante movimento e, very often em plano-sequência, não se muda a lente da objectiva. O que podia ter um efeito de desorientação para o espectador clássico, hoje devido à sua banalidade significa que já nem nos damos conta. A famosa amplitude focal do plano da entrada da personagem interpretada por Madonna em Dick Tracy (1990) de Warren Beatty (e a exuberância das cores do guarda-roupa) foi a única situação que a memória guardou do filme. Mas, ainda assim, se entende o maneirismo da profundidade de campo para conectar o andar sensual da personagem que está sendo vista através da porta aberta pelo detective sentado no seu gabinete, outra coisa são as constantes mudanças de foco no interior do plano em Spider-Man3 (2007), que já não têm uma justificação no contexto da cena. A terceira é a reliance on close shots. Como já não há personagens e só corpos, a linguagem tornou-se hieroglífica: temos mouths, brows and eyes as principal sources of information [ * ]. Perdeu-se o body language e o momento do “ready for the close-up” generalizou-se. O último dos procedimentos que Bordweel analisa como típicos da intensified continuity são os camera movements. Com o steadycam, mas em particular com a virtual camera, the camera is usually in motion. Em Rope (1948), Hitchcock num exercício de virtuosismo quis fazer um filme num único plano, em 2009, Gaspar Noé faz Enter the Void (2009), um filme num único plano. O que os separa é mais do que os une. Hitchcock foi obrigado a cortar por causa da duração das bobines, mas Noé usou os truques da câmara virtual para simular o movimento contínuo. Da quase imobilidade da câmara clássica passamos para movimentos perpétuos ou ostensivos cuja única explicação é a espectacularidade visual. Mais irritante é o uso da “câmara-trémula”… sempre à procura do plano.

2. Visual effects-driven films

As alterações de sintaxe cinematográfica em relação ao modelo fundador de Hollywood denunciam os hábitos da geração actual. Por um lado os gigs dos computadores fascinados por mundos paralelos da ficção científica (J. R. R. Tolkien, George R. R. Martin, por exemplo) profissionalmente irrepreensíveis no domínio de softwares, e por outro, a geração skateboarder com as suas GoPros ávida de adrenalina (vejam-se as imagens da rodagem de Crank: High Voltage (2009) na internet [ * ]). Os primeiros encaixam naquilo que George Lucas diz ser o painter’s method. O realizador agora relaciona-se com o ecrã (e com o teclado do computador), da mesma forma que o pintor o faz com a tela: aproxima-se para acrescentar um pormenor e afasta-se para ver o resultado. A pós-produção ocupa grande parte do tempo da cadeia de produção de um filme, é recorrente ouvir nos alunos de cinema que qualquer problema com a captação da imagem se resolve na pós-produção. In fact, DaVinci Resolve! Este é um sinal evidente da forma como o computador tem vindo a ocupar um lugar central no cinema em detrimento da câmara. A câmara virtual rivaliza com a câmara física. Outro exemplo dessa importância, e que foi o tema central do congresso da CILECT em 2014 em Newport Beach, é o Previz(ualization). Hoje para conseguirmos um bom financiamento à produção de um filme é melhor apresentarmos uma previzualização feita em 3-D animation de uma cena ou trailer do filme, do que o guião escrito. Ninguém perde tempo a ler! Este tipo de filmes dependentes do uso do computador é tão importante como os seus making-of. É como se os filmes fossem o veículo para o que Hollywood verdadeiramente quer dizer: estamos em permanente actualização tecnológica! Já não há transparência possível do dispositivo cinematográfico, mesmo quando os efeitos de pós-produção passam despercebidos é preciso falar deles no making-of. Os filmes visual-effects driven necessitam que se vá à fábrica ver como foram feitos. O making-of é um género cinematográfico e um produto económico. É a razão de se continuar a editar dvds e bluerays, porque os filmes são vistos em sala ou são pirateados na internet. Os visual effect-driven films são visões económicas e sociais da tecnologia. São utilizações parciais, “profissionais”, por isso são clichés que impedem as visões que vêm do exterior — como é que a arte pode provocar o acidente tecnológico, por exemplo. Nas CGI, os especialistas nunca reflectem sobre os aspectos sensíveis das suas imagens, mas apenas sobre os processos da sua construção. É o exemplo dos making of, mas também da longa espera de James Cameron pelos avanços da tecnologia para poder fazer Avatar, dois casos típicos de determinismo tecnológico. Isto é, o importante é o que se tem a dizer e de que modo as tecnologias podem ajudar nisso, outra coisa é a tecnologia falar uma linguagem técnica, fechada ao exterior, que impede outro tipo de discurso ou linguagem. Na era da industrialização da imagem, a tecnologia pensa por nós e nós perdemos a subjectividade.

Também o remake ascendeu à categoria de género. O que é importante no remake não é o seu conteúdo enquanto género tradicional, mas ver o quanto evolui a tecnologia para se voltar a fazer o mesmo filme. Não se trata de falta de ideias para uma história, até porque ao fim e ao cabo, Hollywood apenas produziu uma: num ambiente de ordem, alguém comete uma falta desestabilizando a ordem e fazendo surgir um herói todo-poderoso que a vai restaurar entrando numa viagem de perseguição ao vilão confrontando-o no clímax final do filme. Pelo meio, alguns heróis apaixonam-se por raparigas virtuosas ou por mulheres fatais na era do clássico, e hoje apenas para justificar as cenas de sexo. À artificialidade da história junta-se a artificialidade do cenário: os actores interagem com o blue/green screen. Acontece também que o corpo físico do actor dá lugar ao corpo virtual da personagem nos estúdios de motion capture. Esta primazia do computador e dos efeitos visuais no cinema actual, faz-nos lembrar os efeitos do stop-motion na viragem do século XIX para o século XX. O espanto do espectador perante a “animação” dos objectos no ecrã, como se já não bastasse as imagens terem ganhado movimento. As atracções do early cinema evoluíram para um cinema que englobou a narrativa para ganhar o público erudito do teatro e da ópera. O cinema não poderia ter permanecido no circuito do espectáculo popular. Mas hoje com a espectacularização da vida, faz sentido o cinema regressar a essa forma de atracção. Afinal, como disse Thomas Elsaesser: “o futuro do cinema é o seu passado![ * ]

Mas, como disse atrás, também há uma geração skateboarder que no seu constante movimento faz filmes como consequência directa disso mesmo: câmara à mão, por vezes câmaras ultraleves ou câmara virtual, com operadores de patins. É a geração que justifica o movimento contínuo, não como experiência da duração do tempo (como o slow cinema), mas como sensações de adrenalina. Quando vemos esses filmes e os seus making-of, percebemos que já não estamos no mesmo comprimento de onda das teses do realismo cinematográfico. Para Bazin, a montagem era interdita sempre que interferisse com o fluir do acontecimento no espaço e no tempo. Hoje, vemos o movimento de câmara como uma urgência em captar as sensações da acção tentando colocar o espectador dentro dessa experiência – veja-se a cena do carro em Children of Men (2006). Mas este procedimento é, porventura, o que mais põe em causa aquilo que deu maturidade ao cinema: o offscreen. A geração skateboard tem problemas existenciais com o envelhecimento, a ausência de montagem é o seu elixir de juventude. No early cinema, quando se passou dos filmes de perseguição aos last minute rescued films com a sua cross cutting de dois espaços de acção diferentes no mesmo tempo, o cinema atingiu a sua maioridade na sua capacidade de sugerir pela encenação, direcção de actores e montagem o que poderia estar a acorrer em simultâneo noutro espaço. Não foi fácil fazê-lo, porque ainda causava sensações contraditórias e incredulidade ao espectador ver o movimento fotográfico projectado num ecrã. No fundo é tudo aquilo que o espectador percebe, mas não vê, porque apenas lhe foi sugerido. Ora, um filme com longos planos-sequência mata essa possibilidade imaginária que o offscreen permite, porque reduz o mundo ao plano. Ou seja, o plano torna-se numa unidade formal e significante auto-suficiente [ * ], matando o imaginário e o enorme poder de sugestão que o cinema ganhou com a sua maturidade. Será um efeito da globalização e do tempo instantâneo que reduz o espaço apenas a um espaço global - sem curvas, nem esconderijos - onde tudo está visível em permanência, que Paul Virilio proclamava na sua tese sobre a dromologia? Orson Welles dizia que: “a long-playing full shot is what always separates the men from the boys”, embora os planos-sequência de agora e os do tempo de Welles não signifiquem a mesma coisa, hoje “the camera is likely to prowl even if nothing else budges[ * ], e são os rapazes os responsáveis por isso. Um fenómeno de audiências actual no youtube é o mannequin challenge. Alain Resnais tinha-o criado em Last Year at Marienbad (1961) para construir um tempo cinematográfico que fundia real e imaginário. Mas qual é o significado do mannequin challenge? Só o podemos entender, uma vez mais, pelo esvaziamento da narrativa e pela sobrevalorização do artifíco. É o “colapso da narrativa”, de acordo com aposição mais radical de Dixon, ou a narrativa fragmentada e episódica pela introdução crescente de “espaços mortos narrativos”, para que o artifício tenha a sua deixa. Passamos do “cause and effect” para o “pause and effect” [ * ].

E aqui chegamos a um maneirismo que o cinema clássico tinha reprimido para não distorcer o pathos que se pretendia na relação entre o espectador e o filme, só possível tornando invisível o seu fabrico. Historicamente, o maneirismo introduziu o movimento na composição clássica. Podemos ver isso nos corpos alongados de El Greco e nas perspectivas de Tintoreto, como indício para o que viria a seguir na pintura com a composição de linhas curvas e onduladas do Barroco que mergulharam o espectador num tropel e êxtase. Teremos de esperar que a tecnologia digital do cinema estabilize (provavelmente só o alcançara com a nanotecnologia) para avaliarmos se o momento presente é apenas um momento maneirista, ou definitivamente a entrada da indústria no barroco, visualmente mais atraente para gerações high-tec, com as devidas implicações que isso terá no cinema. Elsaesser afirma que no “cinema digital”, a palavra “cinema” está a mais. A depuração deu lugar ao excesso. Será este excesso excessivo, este “stylish style” o que caracteriza o cinema pós-clássico? Bordwell afirma que o pós-clássico é uma forma inovadora de manter a tradição. Portanto esta forma inovadora baseia-se numa decoração expressiva (efeitos visuais); histórias básicas e estereotipadas; perda de densidade psicológica das personagens, de qualidade de diálogos e de acuidade visual do realizador, incapaz de tirar partido de um plano fixo para revelar informação pertinente. A intensified continuity é feita por e dirige-se a um espectador hiperactivo, que já não se consegue concentrar. Nunca como agora se diagnosticaram tantos casos de dislexia e epilepsia nas gerações mais jovens. A saturação e intensidade provoca epilepsia, mas como Bordwell afirma: “the triumph of intensified continuity reminds us that as styles change so do viewing skills[ * ]. Podemos então ficar tranquilos?!

Bibliografia

  • BOGDANOVICH, Peter (1992) ¾ This is Orson Welles. New York: Harper Collins.
  • BORDWELL, David, Janet Staiger and Kristin Thompson (1985) ¾ The Classical Hollywood Cinema: Film Style and Mode of Production to 1960. New York: Columbia University Press.
  • BORDWELL, David (2002) ¾ “Intensified Continuity: Visual Style in Contemporary American Film”. Film Quaterly 55, nº 3.
  • BORDWELL, David (2006) ¾ The Way Hollywood Tells It. Story and Style in Modern Movies. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press.
  • DIXON. Wheeler Winston (2001) ¾ “Twenty-Five Reasons Why It’s All Over” in: Jon Lewis (ed.) ¾The End of Cinema as We Know It: American Film in the Nineties. New York: New York University Press.
  • ELSAESSER, Thomas and Kay Hoffman (eds.)(1998) ¾ Cinema Futures: Caim, Abel, or Cable? The Screen Arts in the Digital Age. Amsterdam: Amsterdam University Press.
  • GIL, Inês (2005) ¾ A Atmosfera no Cinema. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
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  • SCHATZ, Thomas (1993) ¾ “The New Hollywood” in: Jim Collins, Hilary Radner, and Ava Preacher Collins (eds.) ¾ Film Theory Goes to the Movies. London: Routledge.
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  • VIRILIO, Paul (2009) ¾ The Aesthetics of Disapearence. Cambridge MA: MIT Press.

Notas

[ * ] Cf. The Classical Hollywood Cinema(1985) e The Way Hollywood Tells It (2006)

[ * ] Sendo alguns deles escritores como William Faulkner, por exemplo.

[ * ] Thomas Schatz suggests that after the 1970’s films became “increasingly plot-driven, increasingly visceral, kinetic, and fast-paced, increasingly fantastic (and thus apolitical), and increasingly targeted at younger audiences”. Cf. “The New Hollywood” (1993), p. 23.

[ * ] Este é o “princípio de maturidade” do cinema quando abandona as atracções do “watch me move” pela arte da imagem em movimento capaz de contar uma história de forma “transparente”.

[ * ] Esta influência do romance vitoriano na sintaxe cinematográfica de Griffith ficou célebre no ensaio de Eisenstein, “Dickens, Griffth e nós”, que relaciona o método do realizador norte-americano com o dos realizadores soviéticos da vanguarda da década de 1920. Mas também no texto escrito pelo próprio Griffith “Tomorrow’s Motion Picture”: “Há uma ideia que gostaria de sublinhar aqui mesmo — uma ideia muito frequentemente esquecida ou menosprezada, que é — que o cinema é mesmo uma nova forma de expressão literária e artística”. Mas o ênfase do “novo” é importante porque como ele próprio acrescenta: “literary ability… is not enough; the applicant for screenwriting must have a screen mind; he must be able to visualize clearly and consecutively… When he writes “Scene I” he must mentally see it reaching out in unbroken continuity to “Finis””.

[ * ] O enquadramento também separa o espectador da acção: ele é testemunha e não actor, por isso o dispositivo não pode denunciar a sua presença, como o sistema de atracções fazia nos primeiros anos do cinema.

[ * ] A montagem alternada funciona até certo ponto como o paradoxo de Zenão sobre a corrida entre Aquiles e a tartaruga: por mais rápido que o guerreiro seja, a tartaruga chega sempre primeiro ao ponto seguinte. No entanto, como a montagem conecta as acções, ela vai encurtando os espaços vazios que existem entre o herói e o vilão permitindo o encontro e o clímax final. Veja-se o tão badalado encontro de Al Pacino e Robert de Niro em Heat (1995). Finalmente, os dois actores encontram-se no mesmo plano, apesar de terem participado em conjunto noutros filmes (The Godfather, por exemplo)

[ * ] Veja-se o início de Hellzapoppin (1941) de H. C. Potter. No cinema de animação encontramos a subversão nos filmes da Warner e da MGM. Por exemplo, em Duck Amuck (1953) de Chuck Jones, Duffy Duck procura a todo o momento que o animador (Bugs Bunny só é revelado no final do filme) respeite as regras básicas de aplicação da sintaxe da realização cinematográfica. Esta foi a forma como os filmes destes dois estúdios puderam sobreviver face ao poderio da “ilusão da vida” da Disney, que representa o sistema. Mas, uma vez mais, a subversão só seria possível na animação onde o sistema das atracções não foi abandonado por alguns estúdios e artistas.

[ * ] Na verdade, em 2002, já tinha escrito sobre o assunto em “Intensified Continuity: Visual Style in Contemporary American Film”.

[ * ] Para Dixon, o espectáculo violento dos filmes de grande orçamento explicam o colapso da narrativa. Cf. “Twenty-Five Reasons Why It’s All Over”, p. 363.

[ * ] Na simplicidade psicológica das personagens, meros instrumentos de acções que desencadeiam o espectáculo visual, perdeu-se a dimensão edipiana dos heróis de alguns géneros cinematográficos, como o western e o film noir. Neles, o herói transporta na sua personalidade um passado e uma função que os impede de assentar e constituir família. O cowboy e o detective privado são almas penadas que vagueiam por um espaço agreste e não civilizado: o oeste selvagem e o bas-fond das cidades. Dizia-se por brincadeira que nos westerns, no final, o cowboy casava com o cavalo. Agora nem isso!

[ * ] A nossa atenção é atraída para estes flashes: confortavelmente sentados numa sala de cinema com óptima projecção e som 5.1, inevitavelmente desviamos o olhar do ecrã sempre que a luz do nosso telemóvel acende e uma nova mensagem chegou, muitas vezes do amigo sentado dois lugares ao lado. Somos susceptíveis a estímulos que constantemente quebram a nossa atenção e concentração. É nesse sentido que Scorsese afirma, num dos seus depoimentos no filme de Kent Jones — Hitchcock/Truffaut (2015) —, que nos blockbusters temos clímax a cada dois minutos.

[ * ] Cf. Interpreting the Moving Image (1998). É preciso também não esquecer que a Nouvelle Vague havia partido também da cinefilia para por em causa a linguagem clássica do cinema.

[ * ] Cf. Bordwell (2006), p. 156.

[ * ] É preciso não esquecer que os filmes hoje são feitos pela geração que apenas consegue dar uma entoação ou significado à escrita através de emogis (J). As novas gerações perderam o refinamento da escrita (já não lêem, só vêem o youtube e o facebook e jogam nas consolas e telemóveis), os SMS criaram um novo alfabeto, por isso as emoções postas na escrita traduzem-se em: colocar emojis

[ * ] http://movieweb.com/movie/crank-high-voltage/behind-the-scenes-footage-part-1/

[ * ] “Film and Cinema After Film”. Conferência proferida em Lisboa em 28 de Outubro de 2014, na Universidade Lusófona.

[ * ] Esta concepção do plano defendida por Louis Seguin entra em conflito com outra mais consensual e à qual aludo para justificar o fora de campo como o “não visto” que povoa o plano como uma “presença”. Inês Gil abordou este tema como uma das condições da atmosfera cinematográfica.

[ * ] Cf. Bordwell (2006), p. 135. A afirmação de Orson Welles está referenciada na p. 201 da longa entrevista que o realizador concedeu a Peter Bogdanovich (1992).

[ * ] Cf. Meadows (2002).

[ * ] Cf. Bordwell (2006), p. 184.


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