A universidade, o ensino e as competências de futuro em novos media.

Pedagogia

filipe luz

Filipe Costa Luz

"O conhecimento está na internet e no bolso do aluno."

A universidade é um espaço de análise crítica na qual todos os seus membros devem representar um papel activo em comunidade. Das várias missões a desempenhar, destaco a importância do ensino superior na construção de valores sociais capazes de promover nos seus alunos, docentes e investigadores uma forte ligação ao seu meio envolvente para as grandes questões sociais que hoje enfrentamos.

Uma escola de artes tem um papel especialmente activo nos desafios que o futuro nos apresenta, pois estruturalmente o ensino artístico é alicerçado por disciplinas de história de arte que tão facilmente nos ilustram o modo como o passado se apresenta tão próximo da actualidade. As constantes transformações sociais que sofremos ao longo da história reflectem contextos definidos cronologicamente, mas quando revistos verificamos facilmente a sua proximidade com a actualidade.

O passado revela-nos um mundo em constante mudança, em evolução permanente e no qual as comunidades se foram adaptando ou transformando. Que indicativos são sugeridos pelas novas gerações e que lições devemos retirar do passado?

Se verificarmos o passado recente da indústria cinematográfica, a transformação digital forçou a obsolescência do suporte analógico de captura de imagem e sua projecção em sala de cinema. Como reflexo imediato, muitas das empresas deste sector que se encontravam confortavelmente consolidadas com consistente história de 100 anos de produção de filmes em película, tiveram de se adaptar ou transformar para enfrentar o novo desafio digital.

Veja-se o caso, e péssimo, da Kodak. No período Victoriano de grandes invenções, no qual Eadweard Muybridge capturou o galope de cavalos em alta velocidade para estudos científicos, Étienne Jules-Marey desenvolveu a cronofotografia com incríveis dispositivos fotográficos, Louis Le Prince criou câmaras com 16 lentes para registar pequenos segmentos de filme, o visionário George Eastmann criou em 1888 a empresa KodaK para no ano seguinte disponibilizar filme em película criando assim o modelo estandardizado da indústria até meados do ano de 2000.

A Kodak tornou-se um colosso mundial, com anos dourados nas décadas de 50 e 70, mas a partir de 1997 começou a apresentar quebras financeiras de cerca de 80% até ao período actual em que agora, a pequena empresa sobrevive num nicho de mercado. Olhando para trás é fácil identificar erros, contudo uma dificuldade na contemporaneidade é criar perspectivas de futuro, identificar novas tendências e desenhar estratégias disruptivas que possam singrar a curto e médio prazo. Ora o que estranhamos na Kodak é que nos anos 70, quando esta empresa dominava 90% do mercado de cinema e apresentava uma quota de 75% de câmaras fotográficas nos estados unidos, teve a capacidade de criar a primeira câmara fotográfica digital, mas, simultaneamente, a incapacidade de prever o período seguinte: a total conversão digital nos processos de produção fotográfica e cinematográfica e, por conseguinte, a necessária reestruturação do seu negócio empresarial.

Protótipo Electronic Still Camera desenvolvido por Steven Sasson para a Kodak em 1975.

Estes factos são hoje facilmente compreendidos, contudo a dificuldade opera no momento presente e em qualquer empresa ou profissão. A Kodak, como empresa gigante, tornou-se pesada, burocrática e com incapacidade para reformular as suas estratégias face às transformações do mercado que ela mesmo criou. Então, porque não reflectimos um pouco sobre este caso Kodak e o tentamos aplicar na nossa prática diária?

Este exemplo paradigmático mostra-nos a volatilidade dos tempos, que nada deve ser dado como garantido, o que naturalmente deve ser ponderado no contexto da profissão de docente e nas metodologias do ensino universitário. Também o ensino sofre de estruturas pesadas, muitas vezes lentas, burocráticas que tendem a cristalizar-se, iludindo-se quanto aos desafios reais que a sociedade enfrenta.

No contexto de medias artísticos, os movimentos contemporâneos apresentam-se num momento de mudança muito importante, no qual os reflexos da prática artística evidenciam um novo papel dos artistas na sociedade. As performances contemporâneas da arte não se limitam em géneros definidos, sejam eles pintura, escultura, design de comunicação, música ou videojogos, mas antes experiências hipermedia que aglutinam diversas áreas do saber, distintas especialidades e que se circunscrevem em precisos intervalos de tempo. De um modo muito simplificado, esta nova realidade envolve os artistas em projectos multidisciplinares, trabalhando cooperativamente em equipa; as suas obras não seguem um desenvolvimento metodologicamente definido, ou seja, cada produto é uma obra distinta de intervenção, sem uma relação óbvia com trabalhos anteriores.

O mesmo se aplica ao mercado empresarial, no sentido em que as empresas não se cingem a um cliente ou a um mercado específico para não sofrerem de um “efeito Kodak”. Deste modo, o ensino universitário não pode seguir uma clássica orientação de formar estudantes para um trabalho ou para uma profissão, mas antes preparar os alunos para diversos trabalhos ou profissões. As missivas para a educação de futuro europeias e norte americanas são muito objectivas na definição do profissional de futuro, sendo claro que as transformações complexas dos mercados têm impactos imediatos.

Veja-se como as profissões mais procuradas em 2010 não existiam em 2004 (Hagel, Brown & Davison, 2012). Para se poder atingir sucesso na próxima década, os estudantes terão de demonstrar perspicácia na interacção de um cenário de mudanças rápidas nas instituições, sendo-lhes exigido requisitos multidisciplinares de habilidades (Davies, Fidler & Gorbis,2011: 13). As competências actualmente exigidas alteram-se constantemente, sendo que muitas das tradicionais profissões encaminham-se para a automação, mostrando como as tecnologias ocupam um papel progressivamente maior nas nossas vidas.

As competências que são agora mais relevantes, relacionam-se com actividades sociais e cívicas, nas quais o empreendorismo é uma capacidade muito importante para combater a cristalização, resiliência e criar habilidades para o profissional se adaptar à mudança (EU, 2018). Criatividade, Comunicação, Pensamento Crítico, Iniciativa, literacia tecnológica, capacidade de resolver problemas e curiosidade, são algumas das competências mais importantes definidas por instituições como a EU, UNESCO e OCDE para serem incluídas nos currículos programáticos de ensino superior (Marope, Griffin & Gallagher, 2017; MBAE 2008: 14).

De igual modo, a Association for Career and Technical Education recomenda a imediata necessidade de melhorar o modo como os conteúdos académicos são lecionados (ACTE, 2006: 14). As metodologias de ensino devem manter vivas as espectativas dos estudantes, mas alternando os tempos e modos de ensino.

No período da revolução industrial, as escolas não precisavam preparar os estudantes para produzir uma imagem global de cenários de futuro, pois cada aluno teria um papel circunscrito e definido na “linha de montagem” empresarial. Hoje o cenário alterou-se por completo e é lamentável que algumas escolas continuem no modelo de ensino de séc. XIX, com metodologias de ensino passivo e pouco enquadradas com as dinâmicas actuais ou de futuro.

Muitos professores ainda acreditam no modelo em que eles têm o conhecimento e que através de uma aula disseminam a informação para os alunos. Ora, “o conhecimento está na internet e no bolso do aluno”, algo que não acontecia no séc. XIX, nem mesmo nos tempos mais recentes, então porque muitas escolas e professores continuam agarrados a modelos obsoletos do passado? Oferecer problemas aos alunos para que os possam resolver em grupo e partilhar a informação com todos, cria uma participação activa e empreendedora, tanto no aluno, como no professor. Este não tem de conhecer a solução, mas sim ser capaz de ajudar os alunos a levantarem problemas, procurarem cenários possíveis e partilharem as ideias para que em comunidade possam escrutinar o seu trabalho e ampliar a sua visão sobre uma determinada questão. A sala de aula não pode ser um espaço físico limitado, mas sim uma área hipermédia, dinâmica e inconstante. Sim, uma sala de aula deve ser instável, um local que combate dogmas, que se adapte a diferentes perspectivas de análise para cada problema, que combata o sedentarismo e, por conseguinte, que possa motivar a academia a evoluir em comunidade.

«Being dumb in the existing educational system is bad enough. Failing to create a new way of learning adapted to contemporary circumstances might be a national disaster. » (Edwards, 2017). David Edwards sublinha o perigo de uma mentalidade de um pensamento encadeado, em que o aluno num primeiro momento aprende e só depois aplica. Ou seja, vem primeiro para a escola, depois já está preparado e pode ir para o trabalho. O risco de continuarmos neste modelo é assustador, pois continuamos a formar alunos com uma visão da era industrial e os professores aceleram a sua cristalização em disciplinas que se transformam em cadeiras de séc. XIX. Será uma coincidência chamarmos de “cadeiras” às unidades curriculares por ter lá um professor cristalizado em cima dela? Enfim, tal como um “caixa de supermercado”, que nos confronta friamente com um olhar de Hal 9000, está a ser progressivamente substituído por uma máquina, também este professor passivo pode ser facilmente trocado por um vídeo Youtube ou Ted Talks.

Esta necessária transformação do ensino é um desafio necessário para a academia e o recente trabalho nas licenciaturas em videojogos e Design de comunicação da Universidade Lusófona visam combater este passado com metodologias e pedagogias de futuro. Apesar da juventude de uma área como a de videojogos, o risco do ensino ser contaminado por esta tradição da academia é uma evidência e, por essa razão o nosso trabalho pretende ser disruptivo, provocador e dinâmico. Uma universidade preparada para a mudança, constituída por docentes com participação activa no mercado combinados com outros de perfil de investigação, permitem elevar o ensino dos videojogos para as competências de futuro.

Os videojogos não são e nunca foram uma coisa de crianças, mas antes aplicações cibernéticas capazes de se constituírem em performances particulares, nas quais interagimos socialmente através de um jogo. «What is the social situation of play? What other people are around the play space (whether immediately or in a distributed network) and what influence do they have on the performance? What social, cultural and political assumptions does the performance involve?» (Darshana, 2017: 299). Estas questões são um pequeno exemplo de como os videojogos podem ser analisados em diferentes contextos, sejam eles no campo da técnica, do apparatus, da relação social do media, da auto-reflexividade do jogador ou da sociedade. Será muito mais fácil criar um curso de jogos assente em metodologias do passado, com aulas passivas nas quais o docente leciona software e os alunos operam em série como uma linha de montagem. Mas como podemos responder a questões de fundo, ajudando a criar uma indústria de futuro se o ensino continuar num modelo orientado para formar estudantes para secções limitadas que se engrenam numa máquina produtiva qualquer? Fará sentido criar especialistas em áreas particulares dos videojogos para resolverem problemas actuais do mercado, ou é preferível preparar alunos para as adversidades de um futuro complexo, no qual o mercado de amanhã terá novas profissões que ainda não existem neste momento?

Espaço DELLI (Universidade Lusófona) para aulas, trabalho, investigação e lazer.

O paradigma mudou e os estudantes de hoje estão mais aptos para a mudança do que gerações anteriores. Num estudo recente no contexto dinamarquês de estudantes de mestrado, os inquiridos não apresentam objectivos definidos de trabalhar numa determinada empresa, pública ou do estado. Preocupam-se sim em trabalhar no maior número possível de organizações e, de preferência em áreas debate cívico, activismo e sustentabilidade. (HCA, 2017. Os estudantes de hoje sabem que o desemprego não é necessariamente mau (McChesney, 2014, p. 79), porque não ambicionam uma profissão para a vida, mas sim o maior número de experiências profissionais possíveis. E a universidade, tem a mesma capacidade de evoluir e transformar neste cenário actual?

Referências

ACTE (2006) Reinventing the American High School for the 21st Century in The Association For Career And Technical Education. https://files.eric.ed.gov/fulltext/ED524837.pdf (acedido a 31 de Janeiro de 2019).

DAVIES, A., FIDLER, D. & GORBIS, M. (2011) Future Work Skills 2020 in Institute for the Future for the University of Phoenix Research Institute http://www.iftf.org/uploads/media/SR-1382A_UPRI_future_work_skills_sm.pdf (acedido a 31 de Janeiro de 2019).

DARSHANA, J. (2017) Performativity in Art, Literature, and Videogames, Palgrave Macmillan.

EDWARDS, D. (2017). American Schools Are Training Kids For A World That Doesn't Exist in Wired Magazine. https://www.wired.com/2014/10/on-learning-by-doing/?mbid=social_fb_onsiteshare&fbclid=IwAR1pK1PIAlZVDuaAhwtuXJNrc3U-eQoP-IHCLLDZ1gKWO55HtDIG4x54Xww

EU (2018) COUNCIL RECOMMENDATION: on key competences for lifelong learning in Official Journal of the European Union. 22 de Maio.
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32018H0604(01)&rid=7

HAGEL, J. BROWN, J., DAVISON, L. (2012) The Power of Pull: How Small Moves, Smartly Made, Can Set Big Things in Motion New York: Basic Books.

HCA - Human Capital Analytics Group (2017). Competencies for the future in Copenhagen Business School. https://www.cbs.dk/files/cbs.dk/competencies-for-the-future.pdf (acedido a 31 de Janeiro de 2019).

MAROPE, M., GRIFFIN, P. & GALLAGHER, C. (2017) Future Competences and the Future of Curriculum A Global Reference for Curricula Transformation in INTERNATIONAL BUREAU OF EDUCATION. In http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files /resources/future_competences_and_the_future_of_curriculum.pdf

MCCHESNEY, R. W. (2014). Blowing the roof off the twenty-first century. New York: Monthly Review Press


Fotograma topo: Sala de aula em 1890 Washington, US


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