Um Corpo Vibrátil

O som na reformulação do espaço e do tempo

Luís Cláudio Ribeiro

The sound must seem an echo to the sense
Alexander Pope - Sound and Sense

1.

Há pouco mais de duzentos anos o que entendemos hoje por «cultura do som» emergiu como uma nova constelação do conhecimento impulsionada por um espaço antropológico em constante mutação e uma tecnologia a desejar tornar público o que antes pertencia a grupos restritos. A modernidade do som começou com uma passagem suave de marcos visuais a tecnologia em que o som se quis visível e produtor de sentido. Da Acústica (1802) de Chladni ao telégrafo de Morse o elemento vibratório do que está vivo foi congregando adeptos e investigação que passava pela própria linguagem e os seus modos de uso ou privação como a surdez [ * ].

Em causa no século XIX não estava apenas o impulso para a luz, no caso da fotografia, mas também para um elemento sensível, o som, que tinha a sua própria matriz e dispositivos, bem como se associa sempre a uma outra forma de cultura. A cultura do sensível, quer como memória, quer como vivência é notória naquele tempo com o aparecimento de obras literárias que revelavam o estado do vivente no meio urbano ou rural. Produzida ancestralmente a partir de sinais sonoros, em diferentes dipositivos, esta cultura apenas mereceu atenção a partir do século XIX quando a técnica e o desejo de reproduzir o invisível se instalou nos principais centros e laboratórios de investigação e de invenção.

Ouvir e escutar fez-se parte da reconstrução de um acesso ao real e à formação individual, unindo cada vez mais as comunidades em torno de uma fundação sónica da técnica e do sujeito. De Chladni a Helmholtz, de Bell a Edison, ou de Martinville a Charles Cros (só para citar alguns) a vibração e a ressonância tornaram-se núcleos de caracterização de um novo conhecimento e pulsão para o invento de objetos técnicos. A duplicação do real e da própria vida, que assistiremos já no interior do século XX e XXI, fez-se por fragmentação dos sentidos da visão e da audição, sobretudo, chegando a algumas artes e técnicas, como o cinema, quando foi possível renovar uma unidade geral pela sintonia e a sincronia.

A modernidade do séc. XIX refez pela técnica parte da sensibilidade do sujeito tão bem expresso por Rimbaud [ * ] e na investigação de Helmholtz: «the emergence of a new position for the listening person, namely a position of doubleness as both object and subject, simultaneously transparent and opaque to knowledge» (Steege, 2012: 44).

Os estudos sobre o ouvido e o som na primeira metade do séc. XIX permitiram a fundação de uma teoria sobre o som e, sobretudo, sobre o órgão da audição: tomou-se a partir daí como um órgão plástico e múltiplo, suscetível de ser exercitado e educado (Steege, 2012: 54). O que pressupõe um novo «regime de escuta». É este regime que, em diferentes operações, será essencial para a compreensão da música gravada ou dos fragmentos, «objetos», sonoros que compõem a banda sonora de um filme, um vídeo ou um jogo. Ou mesmo o nosso território de deambulação.

Assim, nas primeiras patentes e na receção aos novos gravadores e reprodutores de som é a prática educacional que está presente, para além de uma alternativa ao logocentrismo, promovendo o ouvido a um órgão reativo e operacional na construção do poiso ontológico humano. O som torna-se assim um «objeto epistémico» com diferentes vértices onde cada função se estabelece e pode ser cultivada: a voz, a palavra e o tom; harmonia, som e sentido; mundo, vivente e lugar.

2.

Tínhamos falado sobre os dois segredos a desvendar no século XIX: a luz e o som. Nenhum destes elementos se adquire por inteiro sem a intervenção da técnica. Mesmo assim a luz ficou ligada às opacidades. O que vemos é apenas a manifestação da luz sobre as materialidades terrestres. Já com o som quase conseguimos por inteiro a sua manifestação. Seja em Martinville, seja em Edison e subsequentes, o som é na técnica de gravação e reprodução o que pode ser. Mas ao contrário da luz não necessita da ilusão elétrica e neuronal para ganhar elementos de qualificação, como o volume, o timbre e a duração.

Isto vem a propósito de uma etapa anterior ao meio de desocultação do som, a fonografia. Durante muitos anos, o som foi o elemento de entretenimento nas ruas das cidades europeias, como será também na década de vinte do século XX, com a rádio.

Para compreender esse aspeto que ainda é vulgar no século XXI, se retirarmos as máquinas produtoras de som, como os computadores, uma espécie de «máquina de Frankenstein», devemos falar do meio mecânico, como subtítulo dos instrumentos artesanais; surge daqui o que entendemos hoje como música mecânica. Também esta não foi entendida, sobretudo por se tratar de arte de rua que poluía o ambiente sonoramente: existem milhares de documentos sobre o ruído provado por estes instrumentistas de rua, nomeadamente nas cidades inglesas [ * ]. A passagem da nota a uma borbulha metálica, a separação destas borbulhas num espaço que contemplava o tempo do percurso mecânico da palheta, é uma revolução só possível num tempo em que ideias, utopias e conceitos se podiam converter em materialidades. Em objetos mecânicos que tinham em si toda a magia dos velhos instrumentos musicais sem a complexidade da interpretação. Um objeto mecânico transformado numa orquestra que iria reproduzir e difundir música e sons.

Mas emerge nesta área uma palavra que agora está novamente a ser redescoberto: a ressonância. Muito antes das experiências e tratados de Bell e Helmthotz, o primeiro para o telefone o segundo para os padrões musicais, síntese da voz humana e ressonadores, esta palavra surgiu como a possibilidade da repetição e, simultaneamente, como o que diverge da natureza. O canto preciso num piano dava a este instrumento a possibilidade de, por ressonância, se expressar através das suas cordas. Assim, da música mecânica, muito objetual e física, passamos para possibilidade de o som ressoar nos objetos, seja numa camada de papel enegrecido, seja em plástico ou vinil. E nunca mais paramos. E esta ideia de ressonância também pode ser observada noutras artes.

O ressoar é primeiro um decalque material para ser depois uma intuição circunscrita ou prolongada. O som é isso até ao aparecimento de máquinas que prescindem de parte substancial ou da totalidade da energia humana.

Com facilidade, e o percurso que a ciência fez no séc. XIX foi esse, os inventos saíram dos laboratórios e da experimentação para se instalarem nos comércios e nas casas e assim nasceu uma indústria que criticada pela sua fetichização e transformação da música em mercadoria perdura até aos nossos dias. O que se desejou estável, inamovível, como a composição e a melodia, ganhou pela força da técnica um novo contorno e uma nova identidade, aproximando-se do que pensamos de uma cultura sensível que no seu rasto etnográfico se constituiu no século XX como um modelo de perceção é de identificação do lugar e das suas populações, mesmo que por vezes desvirtuados ou descaracterizadas.

O som retoma o seu lugar essencial a partir do seu manuseamento depois da fita magnética e do surgimento da noção de estúdio, enquanto sala de montagem, o que já acontecia no cinema. Os anos de 1930 ficam então marcados pela convicção de que não tinha sido em vão a transformação de uma ciência académica numa ciência experimental e a sua saída do laboratório para o auditório. Temos que reforçar esta ideia: esta emergência consagra uma tecnologia de comunicação à distância, aliás como todas, e promove uma relação próxima entre conteúdos e comunidades. O som transforma-se assim numa mercadoria, não porque se popularizou, mas por ser desde sempre uma pertença da cultura sensível e popular: gramofonizou-se. Isso permitiu saber o que outros pensam das suas melodias e, melhor, como fazê-las e ouvi-las sem nunca ter frequentado um conservatório de música. Com esta ação, também a educação do ouvido, a atenção e as afinidades se foram estabelecendo a partir das materialidades sonoras e de um ouvido material (usando aqui terminologia antiga de Helmholtz) que se foram encontrando no tempo e no espaço da reprodução, muito antes da produção.

3.

O som na era da reprodução técnica foi apenas um percurso lógico de um sujeito em constante busca de unir fragmentos e, neles, culturas e possíveis desenvolvimentos. Nada de mais para um corpo que estava a ganhar um outro ritmo pela sua eletrificação. O corpo electrificado pelo mecanismo, o dispositivo, soube ser o recetáculo correto para as diferentes «grooves» e para a sua hibridez. Um corpo que ouvia/via a rádio e o cinema e mais tarde a televisão e o vídeo. Os trinta anos dourados do século XIX, entre 1860 e 1890, são depois repetidos, entre 1920 e 1950, entre e depois de duas grandes guerras que fizeram também elas repensar o lugar do corpo mortal no mundo, bem como pensar outras vidas possíveis a partir do que os meios de comunicação e a tecnologia traziam. Era possível amar à distância e era possível pensar essa distância. É isso faz nascer tudo o que sabemos da segunda metade do século XX, em termos artísticos, estéticos e tecnológicos.

Fomos finalmente arrancados de um pouso ontológico, a partir do ouvido, para a ação de reconstrução de uma nova forma de estar, ou pelo menos de cerzir os enormes buracos à vista que deixou a modernidade. O cerzimento não será mais do que dar consequências a uma ressonância que vinha, «simpática», desde a vibração do século XIX. A fita magnética ou o disco não são mais do que refazer o tempo, para quem cria e quem escuta. A níveis diferentes sabemos que a durée bergsoniana, ou uma memória cultural e ética, se exprime noutro tempo. É o tempo de escuta dos novos modernos.

Aos poucos a atenção desviou-se do mundo e começou a indagar as máquinas reprodutoras. O que tinha nascido como um experimento científico (Helmholtz) e depois base de um artefacto para gravação e comunicação à distância da voz humana (antes em Scott de Martinville, e depois em Cros, Édison e Bell, entre outros) começou a fazer o seu percurso a partir dos desvios funcionais destas máquinas falantes. Em poucos anos, a voz humana deu, em parte, lugar à música, e a música gramofonizou-se sob o império de uma internet antes do tempo: a rádio. As alterações da escuta, promovidas por essa atenção e educação ao fragmento sónico, promoveram uma contaminação fácil, como uma «vibração simpática» dos instrumentos, do "ouvido espiritual" (Helmholtz) que fez do que se ouvia no gramofone e, sobretudo, na rádio uma hibridez de géneros que já bem no interior do século XX vão desde o Rock ‘n’ Roll à Pop.

A cultura sensível, que estava localizada nos semáforos sonoros, passa a ser global como uma paisagem geral que tivesse emergido como uma natureza nova. E, assim, a cultura popular densificou-se e encontrou novos espaços de culto que já não eram apenas físicos mas promovidos por materialidades inventavas para dar expressão total a um corpo que tendo-se fragmentado ao deslocar a voz humana para fora de si ou incorporando-se numa representação imagético, estava pronto para um corpo com uma audição contaminada pelo manuseamento dos sons, primeiro nos suportes de gravação, na fita magnética, e depois na produção sonora em estúdio.

Deve no entanto acentuar-se uma significativa alteração nas formas de receção da obra musical. Se até à localização da obra em espaços confinados a receção mereceria sempre a atenção dispensada a algo fora do comum, como a atividade estética, com a descentralização da emissão da obra musical, a distração à obra (Benjamim e, sobretudo, Adorno) torna a composição uma obra humana ao nível de uma paisagem sonora, que todos podemos ouvir mas só com intenção escutamos. A casa passou a estar cheia de sons padecendo de uma «esquizofonia» (Schafer) própria das novas tecnologias de gravação e reprodução. Tal como vivemos acompanhados de sons naturais e humanos, também começamos a fazer a vida no espaço preenchido pela música a tocar no gira-discos, na rádio ou pela "banda sonora" dos filmes e da televisão. Torna-se assim parte do fazer quotidiano.

A publicidade aos novos equipamentos domésticos de reprodução sonora fez uso deste novo elemento, incorporando pela personificação (Gitelman) a máquina falante como fazendo parte do círculo familiar e no âmbito artístico como instrumento musical. Aliás o slogan da Philco, empresa norte-americana fundada em 1892, era “a musical instrument of quality”: “singers who have never been particularly popular in the household become favorites overnight [...] With Philco the family hears the singer's voice just as though the artist were present in person [...] Philco is the only radio scientifically designed as a musical instrument” (Suisman, 2010: 22. Publicidade de Dezembro de 1932).

Podemos então dizer que a distração [ * ] é “part of the modern condition - enabled be the revolutionary technology of recorded and broadcast sound that allowed ordinary people to choose to accompany their lives with talk and music from elsewhere” (Suisman, 2010: 45).

O que se passava na sala de concertos ou ao ar livre não deixa de ter importância nessa dispersão dos sons. A escuta reduzida [ * ] (écoute réduite), tão importante na nova música saída do estúdio, no caso de Pierre Schaeffer, torna-se um modo de a todo o momento querer sentir e compreender parte de uma composição sonora. A tecnologia de gravação vai permitir, tal como na literacia, parar o tempo próprio da relação do reprodutor com a gravação, e voltar até ao momento em que o som se sente a partir da sua estabilidade como um objeto contingente. Esta reação vai ser importante, anos mais tarde, quando a noção de síntese desenvolvida na química e filosofia do séc. XVIII e nos artefactos do século XIX, se vai integrar em novos instrumentos, estranhos dispositivos (Trevor Pinch) de produção sonora: os sintetizadores.

Só é possível entender estes novos instrumentos a partir das alterações da escuta ocorridas desde a invenção do fonógrafo e de uma nova perceção do som musical. A alteração na escuta veio permitir ao ouvido da matriz sonora querer outros sons que não estavam disponíveis no meio natural e humano. O corpo fragmentado ouviu primeiro e quis fazer esses sons que ocorriam nessa nova matriz sonora. Para os produzir tinham que se inventar novos instrumentos muito distintos do naipe clássico de instrumentos musicais. Estes novos instrumentos vêm dar ao produto, ao designer de som e ao artista o elemento sónico desejado. A arte sónica torna-se definitivamente “coisa” mental.

Bibliografia

  • Adorno, T. W. (1962). «On Popular Music», Studies in Philosophy and the Social Sciences, 9, Cambridge: Cambridge University Press.
  • Bell, A. M., (1867). Visible Speech: The Science of Universal Alphabetics, London: Simpkin, Marshall, and Co.
  • Benjamin, W. (1992). Sobre a Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d'Água.
  • Benjamin, W. (2000). Oeuvres, (3 vols. Col. Folio), Paris: Gallimard.
  • Chion, M. (2016), Sound – An acoulogical treatise, Durham and London: Duke University Press.
  • Gitelman, L. (2006). Always Already New, Cambridge: MIT Press.
  • Helmholtz, H.von (1895), On the Sensations of Tone, (1ª edição em língua inglesa 1875). London and New York: Longmans, Green, and Co.
  • Nancy, J-L, (2007), Listening, New York: Fordham University Press.
  • Picker, J.M. (2003). Victorian Soundscapes, Oxford: Oxford University Press.
  • Pinch, T. and Trocco, F. (2002), Analog Days – The invention and impact of the Moog Synthesizer, Cambridge and London: Harvard University Press.
  • Schaeffer, P. (1966), Traité des objets musicaux, Paris : Seuil.
  • Schafer, R. M. (1977). The Tuning of The World, New York: Knopf.
  • Steege, B. (2012), Helmholtz and the Modern Listener, Cambridge: Cambridge University Press.
  • Suisman, D. and Strasser, S. (Edts) (2010), The Sound in the Age of Mechanical Reproduction, Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

Notas

[ * ] Contribuiu para o aprofundamento da relação da fala com a surdez o pai do inventor do telefone, Alexander Melville Bell, com os seus artigos sobre «Visible Speech», nomeadamente, «Visible Speech: The Science of Universal Alphabetics», 1867. Outros estudos foram publicados na primeira metade do século XIX, exemplo: William Henry Henslowe, The Phonarthron: or the natural system of the sounds of speech, de 1840.

[ * ] Na mesma carta (Lettre de Rimbaud à Paul Demeny - 15 de maio de 1871) em que Rimbaud assume o corte/separação profunda de um singular «Car je est un autre» também realça outros : «Le Poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens.»

[ * ] Cfr. Picker, J.M. (2003). Victorian Soundscapes, Oxford: Oxford University Press.

[ * ] A palavra distração, do latim «distractione», remete na sua raiz para um comportamento na receção e uso de equipamentos que vai ser fundamental no séc. XX e XXI: a ideia de separação, divisão da unidade ativa no quotidiano, o que já era uma qualidade da audição em relação aos sons humanos e ambientais, daí os verbos escutar e ouvir com uso distinto quanto à acuidade auditiva e intencionalidade do sujeito: o primeiro gera uma tensão do interior para o exterior, o segundo uma tensão contrária (Jean-Luc Nancy em «À l’écoute» (2002) /Listening, 2007, na tradução inglesa).

[ * ] Chion acerca da «escuta reduzida» esclarece: “In this instance, listening makes willful and artificial abstraction from the cause and from meaning—and I would add, from the effect—in order to attend to sound considered inherently, that is, for those sensible qualities not only of pitch and rhythm but also of grain, matter, form, mass, and volume. In relation to the other forms of listening, it is reduced listening that takes a sound, whether verbal, “musical,” or realistic, as an object of observation in itself, instead of cutting across it with the aim of getting at something else. This is an activity that is strictly voluntary and cultural. (Chion, 2016: 170).


Fotograma topo: rodagem "Mylissa" de Merja Maijanen, 2018


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