Tema do Ano Letivo 2021/2022
Manuel José Damásio
- Head of the Film and Media Arts Department
- mjdamasio@ulusofona.pt
O tema escolhido para o ano letivo de 2021/2022 como unidade temática para desenvolvimento de projetos no âmbito do departamento de Cinema e Artes dos Media da Universidade Lusófona, é o tema “Fascismo e outros Ismos”. Não se pretende com a escolha deste tema promover abordagens a contextos históricos efetivos de emergência e consolidação de uma ideologia concreta, mas sim promover junto dos estudantes uma reflexão e apropriação crítica e artística mais ampla em torno de fenómenos centrais na nossa contemporaneidade, como o sejam a polarização e a radicalização que lhe está associada.
Uma das primeiras gramáticas de língua Portuguesa a apresentar o sufixo – ismo – foi a de Júlio Ribeiro em 1881. Embora o sufixo já há muito estivesse presente na língua portuguesa, por exemplo em palavras como barbarismo ou batismo, é só nesse período que ele ganha a importância que hoje lhe conhecemos como sufixo amplamente utilizado para nomear múltiplas doutrinas, movimentos ou teorias.
O sufixo ismo tem a sua origem no grego (ismós) onde era uma terminação que indicava ação. Com a transposição para o latim (ismus), o sufixo assume o significado de “tomar o partido de” ou “imitar” que hoje lhe conhecemos. Embora na língua portuguesa o sufixo seja neutro e não carregue em si uma conotação, o facto é que ao longo da história, a expressão “ismos” foi muitas vezes utilizada de forma pejorativa, nomeadamente quando utilizada para referir determinados movimentos de reforma ou transformação social. Um exemplo é o movimento abolicionista nos Estados Unidos no século XIX e a forma como este é abordado na obra magistral “The Birth of a Nation” de D.W. Griffith’s.
A partir do final do século XIX, o sufixo passa cada vez mais a estar associado à nomeação de diferentes movimentos políticos e, já no século XX, adquire uma enorme relevância como forma de nomear diferentes ideologias. No século XXI o termo passa a ser uma das palavras mais pesquisadas online e os “ismos” tornam-se um tema recorrente no espaço público contemporâneo.
Ao longo do século XX, o pensamento em torno dos “ismos” não cessou de se desenvolver num contexto onde o ambiente político foi marcado pela ascensão de diferentes regimes totalitaristas, desde o bolchevismo Russo ao Nacional-socialismo Alemão passando pelo fascismo Italiano ou o corporativismo Português. A história destes, e de outros regimes similares, foi marcada por momentos de enorme violência e atentados contra os direitos humanos, que fizeram do século XX um dos mais violentos da história da Humanidades. Só quando reconhecemos que estes acontecimentos se sucederam ao longo da nossa história recente enquanto fruto das ações de homens e mulheres como nós, é que podemos começar a tentar compreender o porquê da emergência destes fenómenos políticos, sociais e culturais. Um dos expoentes máximos do pensamento sobre o totalitarismo foi Hannah Arendt, que na sua obra de 1951 As origens do Totalitarismo, nos introduziu à sua leitura do que denominou “tempos sombrios” ou seja, aqueles momentos onde, na história do Ocidente, emergiram construções ideológicas e movimentos sociais que, como a própria Arendt defendia, produziram tanto mal que deviam ser destruídos. Mas como a própria Arendt afirma “uma vez um crime surgido na história, o seu reaparecimento é muito mais provável do que o seu surgimento original alguma vez poderia ter sido” (Arendt, 2006: 273).
O pensamento de Hannah Arendt identifica e discute elementos que se cristalizaram em diferentes movimentos totalitários e formas de governo cuja genealogia pode ser traçada até diferentes correntes subterrâneas na nossa história e que emergem quando determinadas condições sociais e políticas se materializam. Racismo e imperialismo, nacionalismo tribal ou anti-semitismo; comunismo ou fascismo, são todos exemplos de ideologias e métodos de governação cujas causas desafiam muitas vezes as explicações históricas, criando por isso um espaço imenso para a especulação e desenvolvimento da criatividade narrativa.
Sucedem-se os exemplos de apropriação de diferentes “ismos” nos mais variados géneros, desde a literatura de ficção científica ou fantástica, até ao cinema que aborda as mais delirantes distopias. Um dos exemplos mais brilhantes destas distopias com forte carga ideológica, é o caso da série do escritor norte-americano de ficção científica Isaac Asimov, que durante a sua carreira desenvolveu, primeiro como trilogia e depois como série expandida, o universo da “Fundação”, uma construção ideológica que num tempo futuro virá a substituir um império galáctico em decadência. Partindo da teoria da psico-história (uma disciplina científica inventada pelo próprio escritor), a série de Asimov desenvolve uma narrativa onde o fluir da história é marcado pela introdução de uma sociologia matemática que permite prever o comportamento das massas e antecipar o fim do regime totalitário em que a humanidade vive. A obra de Asimov introduz um dos princípios mais importantes para compreendermos o comportamento das massas: o princípio da incerteza. Se uma população ganha conhecimento dos seus comportamentos previsíveis, as suas ações coletivas tornam-se imprevisíveis.
Este princípio da incerteza explica alguns dos momentos mais dramáticos de ação coletiva na história da humanidade, como por exemplo a loucura que se instalou na China durante o período da “Revolução Cultural” Maoísta, mas também alimenta exemplos cinematográficos mais recentes que retratam regimes com ideologias totalitaristas, como é o caso da mais recente versão de “Dune” realizada por Denis Villeneuve.
O sufixo “ismos” está na base da nomeação de um conjunto vasto de ideologias e movimentos políticos que partilham entre si modelos de organização totalitária da sociedade e uma predileção pelas ações coletivas das massas. O fascismo é um desses exemplos que marcou a Europa do Século XX e foi detalhadamente explicado enquanto fenómeno sociológico na obra “Os fascistas” de Michael Mann. Um aspeto fundamental da análise de Mann é o seu enfoque no facto de que a emergência deste tipo de movimentos está quase sempre associada a períodos de crise e mudança. Ou seja, o sufixo “ismo” continua a manter a sua conotação original de ação e movimento no sentido de mudança e transformação social. Para compreendermos então o porquê da emergência destes fenómenos e irmos além da mera representação por vezes anedótica ou pueril dos mesmos, temos então de olhar para as causas e natureza dessas crises e fenómenos de mudança nas nossas sociedades.
Vivemos hoje um tempo de “ismos” porque vivemos um tempo de múltiplas crises e mudanças. Jared Diamond no seu livro “Upheaval: How Nations Cope with Crisis and Change” coloca no centro desta crise o problema da polarização que se estende hoje, nomeadamente por via da influência das redes sociais, a todas as dimensões da nossa sociedade, destruindo as possibilidades de consenso e diálogo que estão na base da convivência democrática.
Curiosamente, a polarização e a iniquidade já eram os temas dominantes de uma das obras primas da história do cinema “Metropolis” de Fritz Lang de 1928, que também encontrava nesses temas o impulso criativo para desenvolver a narrativa da história de amor que está no centro do filme.
Os “ismos” e as ideologias que lhes estão associados são simultaneamente um tema essencial para compreendermos a sociedade em que vivemos, um tópico com forte potencial de inspiração criativa ao longo de várias dimensões. Os “ismos” são aquilo que na nossa sociedade nos aproxima mas também o que nos afasta, criando tensões tantas vezes inultrapassáveis.
O desafio que colocamos aos nossos estudantes neste ano letivo, é o de olharem para estes “ismos” com um ponto de partida para refletirmos sobre o que nos aproxima e o que nos afasta, sobre a forma como as nossas pré-conceções sobre o que nos rodeia, pode gerar fenómenos de erosão da coesão social e abrir as portas a processos irreversíveis de transformação social em muitos casos de pendor negativo.
Em 2021 um autor Português, Pedro Vieira, escreveu “O grande Livro dos Ismos” de onde retiramos a frase que se segue e que queremos que seja um dos motes para o processo criativo dos nossos estudantes:
“Fascismo, comunismo, cavaquismo, altruísmo, socialismo, surrealismo, escotismo, bota-abaixismo, amiguismo, cristianismo, niilismo, trumpismo, realismo, feminismo...
Cavar trincheiras e abraçar afinidades eletivas é um dos grandes passatempos da Humanidade. Agrupamo-nos de acordo com convicções partilhadas, diferentes modos de estar, de encarar o mundo, de interpretar sonhos e augúrios, de desconstruir a realidade, de construir utopias, de desenhar um rosto, de ver o invisível, de receber a chuva, o dia do Juízo Final ou uma Lua cheia. Agregamo-nos em torno de ideologias e batemo-nos por elas, ou, pelo contrário, rejeitamo-las com unhas e dentes. Às vezes só porque sim.
Vivemos contaminados por ideias, preferências e embirrações, consoante as circunstâncias da vida, e declaramos guerra à mudança. Mas também à imobilidade. Difícil mesmo se não impossível - será passar por entre os pingos da chuva e viver uma vida livre de ismos, de filosofia, de política, de arte, de espiritualidade. Ou dos seus contrários. Se não fosse assim, viveríamos realmente em liberdade?”