Uma visão do Futuro
sobre Belas-Artes
Ensinar Pintura e Desenho em 2030
Margarida Penetra Prieto
- Direção da Licenciatura de Artes Visuais
- p4797@ulusofona.pt
Tentar prever o futuro (2030), por comparação ao que tem acontecido até agora, (2018) é um exercício da ordem da ficção científica cuja utilidade é fazer despertar a imaginação. De imediato à minha imaginação prevê Quatro Cenários possíveis para o ensino artístico dentro da Universidade, mas com certeza existem outros – e mais imaginativos, talvez, do que os que proponho.
ALGUMAS POSSIBILIDADES
Cenários extremos, cenários exploratórios e cenários ficcionais
Cenário 1: tudo continua como está, num fluxo de tradição e continuidade que permite manter as mesmas lógicas de ensino nas artes: mestre/discípulo, professor/aluno, docente/discente.
Cenário 2: à semelhança do que parece estar a acontecer nos países nipónicos, a Universidade dedica-se exclusivamente ao ensino técnico e científico. Serão, consequentemente, suspendidas as áreas das Humanidades e das Artes. O ensino artístico será remetido para escolas não credenciadas e separar-se-á, definitivamente e como atividade, do âmbito profissional legitimado e sustentado por uma formação académica. Será remetido, maioritariamente, para as lógicas do hobby e da terapia pela criatividade. A arte será confinada exclusivamente a uma criatividade sem excelência; a imaginação morrerá lentamente; e o humano perderá aquilo que é, aquilo que o separa, ontologicamente. Vencerão as máquinas numa batalha inútil que aniquilará o saber viver, a experiência real da exploração e o entusiasmo pela descoberta.
Cenário 3: os artistas serão reconhecidos como imprescindíveis à sociedade pela sua capacidade de imaginar e propor situações inéditas: pertencerão a equipas de investigação nas mais diversas áreas do saber. Por esta razão, a sua formação será valorizada. Práticas experimentais, heurísticas, exploratórias terão um papel fundamental e reconhecido, quer como métodos de ensino, quer como vias para fazer investigação. Neste movimento, a tecnologia será uma ferramenta a acrescentar às mais arcaicas e permitirá soluções diferentes, inovadoras e, sobretudo criará outras possibilidades de concretizar ideias.
Contudo, a experiência vivencial com a exploração de capacidades corporais (por exemplo, o domínio da motricidade fina, na utilização do lápis para escrever e desenhar) terá um lugar igualmente importante no desenvolvimento cognitivo, com implicações na personalidade, e no apuramento de capacidades intrínsecas ao humano com uma real aferição em competências úteis. O humano continuará a ter mais importância do que o robot, do que a máquina.
Cenário 4: em 2030, com o teletransporte individual, fazer tudo simultaneamente e chegar a todo o lado (sem passar pela viagem) será o culminar da experiência de compactação do tempo e do espaço. Por isso, a Universidade será necessária como um espaço de encontro, em presença, um lugar para repor o sentimento comunidade, um acesso a experiências de ordem vivencial, percetiva e cognitiva, um espaço para testemunhar diretamente – em vez de em indeferido (mediado por dispositivos) e sem contacto porque, embora seja deslumbrante (e viciante) utilizar as tecnologias imersivas, isso implica passar a existir permanentemente em simulação (onde os sentidos são enganados mas a cognição sabe-o) ou em simulacro (onde também cognição é iludida). Contudo, em 2030, a realidade virtual será da ordem da banalidade e, de tão acessível, entrará num período de enjoo, embora a grande parte da população esteja, então, viciada e doente. A cura passará, sem qualquer dúvida, por um retorno ao real, às situações vivenciais, às experiências reais, coletiva e individualmente, onde os sistemas de cognição e perceção humanos sejam desafiados, bem como a sua imaginação. As terapias pela criatividade, ou seja, o real desenvolvimento de capacidades criativas, inventivas e imaginativas, serão de extrema importância na medida em que garantem prazer e satisfação e, frequentemente, um sentimento de concretização que conduz à auto-estima.
Neste ponto, como âncora à realidade, o sistema das artes terá um papel fundamental, estrutural e estruturante: os artistas terão que criar situações reais que rivalizem com as situações virtuais e esta tensão será manifesta nos contextos simples e quotidianos (no modo como se apresenta uma refeição) e em contextos complexos (no modo como se constrói uma casa para que a experiência de a habitar possa ser maravilhosa, imersiva e prazenteira; no modo como as cidades se renovam para seduzir, por exemplo com a implementação de jardins verticais e no território, de vias pedonais, de espaços ao ar livre cativantes, na criação de panorâmicas deslumbrantes).
Se os artistas e todos os outros criadores e construtores de ideias são, historicamente, os visionários da humanidade é porque a sua imaginação imprevisível se concretiza quando “o mundo pula e avança” e vice-versa. Mas é necessária a sua preparação real para estes desafios, e esta preparação é feita através da formação, do ensino. Por isso, também, a Universidade é um duplo ponto de contacto: põe em relação com o mundo. Neste cenário, a ancoragem ao real não implica o abandono das tecnologias, pelo contrário: a aliança entre a realidade, a arte e a tecnologia será cada vez maior porque a sua existência é interdependente e potenciadora.
CONSIDERAÇÕES E APORIAS PARA FAZER ADIVINHAÇÃO NO SÉCULO XXI ou A RESPOSTA AO DESAFIO “O QUE SERÁ ENSINAR BELASARTES EM 2030?”
A imaginação é um instrumento do pensamento que sustenta e estrutura todas as áreas artísticas e saberes criativos e, como tem vindo a ser comprovado, é fundadora de todas as ciências [ 1 ]. Justamente, qualquer problema ou hipótese como possibilidade de investigação que principia a aplicação do método (científico) é proposto, em última (ou primeira?) instância pela imaginação. Por isso, como ponto de aproximação entre o método científico e a experimentação criativa, a imaginação e a inventividade (que dela deriva) estão umbilicalmente ancoradas à experiência, tanto na ciência como na arte. Por isso, também, o prazer e o perigo da descoberta é-lhes comum. Que perigo existe em imaginar como será o ensino das Belas-artes em 2030, que descoberta está latente nesta projecção de futuro? Sabemos que a qualidade do ensino se determina não só pelo rigor da informação facultada como pelo entusiamo com que os professores se debruçam sobre cada assunto. O entusiasmo contagia, contamina e permite abrir caminho à curiosidade, num processo que se torna cada vez mais imprescindível na passagem de conhecimento, porque capta a atenção. Outra das qualidades do ensino prende-se com a velocidade da assimilação dos conteúdos por parte dos alunos. A velocidade desta aprendizagem tem limites – os limites da cognição humana – que implicam no futuro, na aplicação correta e inteligente da informação. O imediato é a condição atual de relação das pessoas com o mundo e, por isso, a espontaneidade, o instantâneo, a prontidão e a efemeridade das ações ganham protagonismo. A capacidade efectiva de multiplicar as ações sincrónicas (multitask) começa já a manifestar-se no uso simultâneo de equipamentos e apps: ver tudo, saber tudo e estar em todo o lado, mesmo que (apenas) virtual, e por vezes, superficialmente: queremos ser deuses, ser super-heróis com super-poderes, super-humanos (já anunciava Nietzche). Prever o futuro é sempre fazer um exercício de livre associação onde a imaginação e o pensamento intuitivo, tal como é definido por Aristóteles [ 2 ] se conciliam para fazer um trabalho de adivinhação. Mas o que é a imaginação e qual a sua função neste exercício?
“O caminho inicial do processo de imaginar o acto de ser da imaginação é a composição da ideia, como acção do sujeito, que reflecte sobre a realidade. A ideia, como unidade do pensamento, é o ponto de partida do intelecto humano, que observa, questiona, analisa, sintetiza, explica e compreende as coisas e os actos do mundo. Um processo denominado método científico por Descartes. Aprofundado e ampliado a partir do pensamento grego de Sócrates, Aristóteles e Platão, que dimensionaram o hábito demonstrativo como possibilidade humana de conhecer a realidade, ou a apreensão das coisas universais e necessárias. [ 3 ]” (LOPÉZ, 2006, 7)
Assim, observar a realidade hoje e idealizá-la em 2030 é aplicar a imaginação e potenciar aquilo que é verificável, vivencial e experienciável; é expandir, até ao irreconhecível, as técnicas e tecnologias actuais, as experiências que delas derivam ou que através delas se concretizam, ou seja, que têm uma concretude no campo da possibilidade; é ainda projectá-las (tecnologias, experiências e possibilidades), de acordo com um sentido, uma direcção e um contexto, em direcção ao futuro e imaginar como serão ou como poderão vir a ser. Mas este exercício, de pensar, de reflectir na actualidade e de projectar um futuro é muito antigo.
ADIVINHAR UM FUTURO: UM EXERCÍCIO ANCESTRAL
No passado, na origem da cultura Europeia, foi a imaginação, aliada à observação, que permitiu olhar para as estrelas espalhadas pelo céu e compreendê-las como sistema de conjunto, visual e legível. Este olhar, repleto de imaginação e sentido de observação originou a Geometria e a Astronomia, a Cartografia e a Matemática identificadas como as primeiras disciplinas do conhecimento humano. Se derivam da contemplação do espaço celeste é porque este foi tomado como modelo de racionalidade visual. E, este olhar contemplativo em direcção ao céu criou, igualmente, o exercício de adivinhação. Adivinhar significou transformar o céu num ecrã. No princípio, este ecrã é premonitório, constitui-se para o olhar como se fosse uma tela de comunicação entre o visível e o invisível, como um canal de mensagens divinas, e como um meio de contacto entre os homens e os seus deuses. Mas a adivinhação não era uma tarefa para qualquer um: precisava de adivinhos que serviam tanto de intermediários como de observadores.
O que é adivinhar? Do latim divinatio, “adivinhação” remete ao que é divino. O termo “adivinhar” tem, na sua origem o latim divinare, que significa “predizer o futuro”. Por sua vez, divinare vem de divinus, “divino, relativo a um deus” que deriva de divus, “deus”. O ecrã primitivo constituído pelo céu tornou-se, para os gregos, o espaço mágico de adivinhação e de imaginação; era o espaço de interpretação onde se fazia o exame do visível e do real e, também, de nomeação, na medida em que conferia existência linguística. Nas civilizações clássicas, o adivinho é o intermediário dos Deuses; hoje, o adivinho personifica-se nas figuras dos astrólogos, dos leitores da sina marcada nas linhas na palma da mão, das cartomantes, na interpretação do tarot e da numerologia patente no lance de dados, profissões que, entre outras, herdam todo um conjunto de práticas e saberes ancestrais e para-científicos. Nestes agentes, a adivinhação mantém uma tradição de saberes constituídos por práticas ocultas e místicas. Para responder ao desafio de pensar o futuro do ensino das Belas-artes em 2030, transfiguro-me nestes adivinhos, não para ler no céu mas para concretizar num ecrã de computador e projectar aquilo que conheço enquanto artista, investigadora, viajante, consumidora, aluna e professora numa escola de artes.
Na antiguidade clássica, as mensagens proferidas pelos adivinhos derivava da casualidade das equivalências entre o real e a premonição; esta casualidade instaurava-se, intencionalmente, a partir de recursos da linguagem como, por exemplo, os tropos: eram ditas frases metafóricas e alegóricas por parte do adivinho cuja potência seria provocar e abrir possibilidades de interpretação. É a esta estratégia que se deve, ainda hoje, a eficácia da linguagem dos adivinhos e da sua interpretação por aferição com o real. Ou seja, como técnico da magia e do in-visível, o adivinho faz a articulação entre o que é observado e a sua possível significação. Pode-se aferir esta articulação na genealogia comum entre o termo “visível” é o termo “legível” cuja acção assenta no verbo “considerar”. Em latim, considerare agrega cum e sideris (palavra que, no plural designa as estrelas em constelação). Por isso, supõe-se que considerare é um antigo verbo da língua augural (os augures são os adivinhos romanos), portanto, testemunho da actividade do ver enquanto ler – e claro, a imaginação tem um papel fundamental nestas práticas interpretativas.
Para melhor observar o céu, os homens inventaram e continuam a inventar instrumentos de visualização cuja capacidade de ampliação e descodificação do espaço celeste é, cada vez, maior, até à própria substituição deste ecrã pelo do computador onde Deus é substituído por ferramentas como o Google. Hoje, quem não tem uma dúvida que não coloque ao Google? E quando é que o Google não tem resposta? – e justamente, se não a tem é porque os termos de pesquisa não estão a produzir um retorno, ou seja, a linguagem bloqueia a comunicação.
As figuras directamente responsáveis por estas transposições tecnológicas (entre o ecrã arcaico e o ecrã tecnológico) são o cientista e o técnico. Eles são quem herda a responsabilidade dos ancestrais técnicos do invisível e da magia, substituem o adivinho que, enquanto leitor, interpretava as mensagens virtuais a partir de um raciocínio por analogia que se iniciava com a observação sobre o espaço natural. Se o adivinho interpretava as estrelas e o voo dos pássaros (entre outros) como sinais produzidos no/pelo suporte mágico – o ecrã celestial –, o cientista procura conhecer a vida na e além da Terra, e o técnico vem em auxílio com a produção de meios, equipamentos e dispositivos (a tecnologia). Neste ponto, a ciência alia-se a ficções proposta por artistas como Leonardo da Vinci (Itália, 1452) que, no século XVI, projectou máquinas para voar; ou às histórias de Júlio Verne (Nantes, 1828) quando descreviam foguetões e submarinos e outros veículos de deslocação rápida em meios hostis à natural locomoção do homem; também o matemático Arquimedes (Grécia, 236 a.C.) inventou o parafuso que, ainda hoje, é essencial para a construção de todo o tipo de dispositivos tecnológicos; ou, mais recentemente, os romances da escritora Margaret Atwood (Canadá, 1939) preveem um futuro político e ecológico devastador. Neste exercício, a pergunta clássica que se impõe é se a imaginação pode ser também premonitória e, a partir desta pergunta, uma segunda: é a vida que imita a arte ou a arte imita a vida?
Retomo o adivinho. Nas civilizações antigas, o estatuto dos adivinhos era particular: seriam os únicos com o conhecimento dos códigos que lhes permitiam decifrar e traduzir as mensagens do plano do invisível para o do visível, ou seja, seriam os únicos a saber descodificar o que se obscurece no brilho do visível observável e que tornavam essa obscuridade distinta e inteligível a outros homens. Este conhecimento seria fundamental, não porque os Deuses se expressassem – então e agora – num idioma diferente do dos homens, mas porque o fariam de modo encriptado; modo ao qual apenas os adivinhos acederiam como tradutores, inventando e imaginando significados para o que observavam.
“Transparente, aberto e livre de todos os constrangimentos materiais, no pensamento grego o ecrã deixa de funcionar como transmissor da linguagem cifrada dos deuses, pois os deuses falam a mesma língua dos homens. E certo que a falam de um modo obscuro, mas esta obscuridade é o que a torna acessível à inteligibilidade humana: pode-se sempre interpretar os oráculos.” (CHRISTIN, 2009, 354).
No seu território de trabalho, através de uma acção de delimitação espacial gerada pela necessidade de interpretação, tradução e comunicação das mensagens divinas enunciadas por um céu infinito, iniciam-se os caminhos para a escrita e estabelecem-se – são circunscritos – territórios criativos e científicos. Com as suas metáforas terrestres, o céu como ecrã divinatório e oracular foi pensado, pelos gregos na antiguidade, como superfície abstracta e, assim, como suporte de uma criação infinitamente mais importante do que uma nova escrita: como acesso a um modelo intelectual de racionalidade pura que origina a Geometria e outras disciplinas como a Astronomia, a Cartografia e a Matemática. “Os Gregos, ao criarem a geometria, estabelecem, pela primeira vez, o princípio do domínio intelectual do olhar” (CHRISTIN, 2009, p. 227).
O ecrã celestial é a superfície de planificação, plataforma de raciocínio e a base ou estrutura de conhecimento, torna-se superfície de inteligibilidade no sentido em que serve à compreensão do mundo. Se, por um lado, é conceito de apropriação abstracta do mundo, por outro, é limite, pois estabelece um vínculo com a atividade imaginada que se encontra no “para lá” (em direcção ao céu, no sentido literal e metafórico) e, nesta passagem (entre planos), oferece-se como superfície mágica e medium para as mudanças ou transformações entre vida e morte. De um modo similar, na atualidade os dispositivos com ecrã servem exactamente as mesmas necessidades: são espaços de contemplação, divertimento, pesquisa, comunicação. E estão omnipresentes, tal como o céu: pertencem a todos e estão em todo o lado, criando a sensação real de que, a todo o momento, é possível contactar toda a gente e aceder a qualquer informação, ou seja, concretizar o que se imaginar, em tempo real.
PASSADO, PRESENTE, FUTURO
Tal como o parafuso de Arquimedes se tornou fundamental na construção dos dispositivos e máquinas tecnológicos, outras heranças culturais se projetam no futuro.
A invenção do gesto enquadrador do augure é outro exemplo cujas ressonâncias visuais se encontram, hoje, no formato (altura e largura) dos actuais ecrãs dos dispositivos electrónicos, entre outros. É que, para interpretar o céu que, por natureza, é infinito, os adivinhos desenhavam no ar um quadrado cujos limites separavam o “dentro”, interior, sagrado, de um “fora”, exterior, profano. A linha imaginária que definia este espaço enquadrado adquiriria, gradualmente, proporções específicas que futuramente definiriam as dos dipositivos de registo da imagem pictórica, gráfica, fotográfica e digital. Estas proporções são as das raízes quadradas de números inteiros e as do rectângulo de ouro (onde a divisão do lado maior pelo lado menor é igual ou aproxima-se a 1,618, ou seja, Ø, o número de ouro) reenviando a imagem para o espaço natural e para as lógicas de geometria encontradas na natureza. Precisamente, a geometria destes enquadramentos funda-se nas lógicas dos Pitagóricos na Grécia antiga, numa íntima relação com a Música e a Matemática, defendidas posteriormente por autores e artistas do Renascimento como Leon Bautista Alberti e Leonardo da Vinci nos seus Tratados de Pintura. A proporção destes rectângulos enquadradores é igualmente patente nos formatos de papel que usamos diariamente, sem nos apercebermos da magia a eles aludem nem da harmonia que, em potência, está latente naquilo que neles será representado. Estão igualmente presentes nas dimensões dos suportes de pintura convencionais ou nos rectângulos de luz do projector.
A criatividade é intrínseca à humanidade. Desde sempre, o homem é criativo: inventa os utensílios de que necessita, e este inventar requer imaginação, necessidade, adequação e modos de usar. Em 2030 não será diferente: a criatividade continuará a sustentar o conhecimento. E aquilo que Aristóteles definiu como os cinco níveis para o conhecimento, continuará a ser verificável, mesmo que a ordem se altere. Para Aristóteles, o primeiro nível seria o do conhecimento científico (focado na explicação da realidade, na natureza das coisas). O segundo nível seria o do conhecimento prático (implicado e interdependente da experimentação, na medida em que se geraria da aplicação eficiente de uma acção, depois de compreendida na teoria). O terceiro nível seria o do conhecimento técnico (a tekhnê – τεχνη – incide sobre a adequada utilização da tecnologia). O quarto nível seria o do conhecimento artístico (pela utilização da expressão plástica, numa lógica de mimesis e com princípios estéticos que visariam o deleite dos sentidos, a busca do prazer sensorial). O quinto nível seria o do conhecimento intuitivo (manifesto sob a forma de prognóstico fundamentado em conhecimentos anteriores, ou seja, fundado na experiência prévia e no reconhecimento de padrões repetitivos).
Como é que, em 2030, a aplicação dos cinco níveis de conhecimento propostos por Aristóteles se aplica no ensino das Belas-artes?
Atentemos ao conhecimento artístico. O fazer artístico é um apurado fazer criativo, aquilo a que civilização da Grécia antiga chamou poïen. Este termo está na génese das palavras “poesia” e “poeta”. Poeta significa (apenas) “aquele que faz” ou “aquele que cria”.
Ontologicamente, o fazer criativo advém de um impulso, é da ordem da pulsão. Aristóteles estabelece que o conhecimento prático (a praxis) é aquilo que se aprende com a experiência, na aplicação prática de uma teoria e pela repetição de um modo de fazer. Se começa por ser uma acção isolada, pela repetição torna-se um hábito – a competência adquire-se por apuramento do gesto. Contudo, este tipo de conhecimento exige, para Aristóteles, uma introdução teórica que comunica e transmite um determinado saber que pode ser de ordem teórica, conceptual, metodológica e/ou processual. Esta interação – passagem de saberes – é obrigatória, imprescindível, e pode, se não for respeitada, ser fatal como acontece neste exemplo: ninguém se atira à agua, sem antes saber que movimentos deve efectuar para nadar (conhecimento teórico) e tê-los praticado (conhecimento prático), repetidamente (LÓPEZ, 2006, 11-13) ou corre o risco de se afogar. A boa execução dos movimentos do nadador (conhecimento técnico) conduz a melhores resultados no seu modo de nadar e pode – se elevado à excelência – vir a constituir um desenvolvimento, uma optimização dentro da natação como desporto. É neste campo – da excelência das acções e dos seus resultados – que se separam os criativos dos artistas, os desportistas dos campeões olímpicos, os cozinheiros dos chefs, os que tocam piano dos pianistas, os que escrevem e os escritores, etc..
No contexto do ensino artístico, a sala de aula é o atelier. Aqui, a tekhnê (τεχνη) aliase à poïesis (ποιησις). tekhnê é o termo grego na origem de “técnica” que, por sua vez, significa o conjunto de procedimentos, de artifícios, de habilidade de manuseamento que são próprios a determinada disciplina: é um conhecimento do “saber fazer” que enleia, literalmente, o fazer (praxis) com o saber (teórico). O termo tekhnê no contexto da Grécia antiga, exigiria e implicaria um conhecimento artístico. Por seu lado, o termo poïesis não designaria um género – e sobretudo não um género poético nem a suas regras próprias de fazer – mas aquilo que dentro da arte excederia a arte. Este excesso é o ausente na obra, é o que pertence à obra mas está ausente de toda a sua forma (no sentido aristotélico da palavra), fora do artefacto mas dentro do ofício da verdade. (BAYLLY, 18-19). Como se ensina e como se aprende a ser poeta, a fazer obra? A resposta é: não se ensina. Mas no passado, como agora, e como no futuro, para que servem os professores de artes? Servem para encaminhar, para dar as ferramentas tecnológicas, para demonstrar e criar situações de experimentação, mostrar algumas soluções mecânicas, projectuais, processuais, metodológicas, conceptuais e contextuais para conduzir numa direcção, numa pesquisa artística, para permitir uma experiência.
“a experiência, implica perigo e risco: a experiência é, literalmente, a travessia de um perigo. Tudo o que favorece um tal projecto (a soma não mesurável dos ‘acidentes’ felizes que acontecem, o interesse recíproco, a pulsão de fazer qualquer coisa), em nada elimina este risco que é imenso” (LABARTHE: 2009, 111).
Porque há uma relação entre tekhnê e poïesis: numa justa adequação entre a capacidade de agir do artista, o seu gesto concilia impulso e técnica tendo como horizonte de expectativa a obra. As competências técnicas podem ser ensinadas e treinadas para estarem à altura das intenções e das necessidades que a criatividade de cada um exige. Na experiência do atelier, o risco e o perigo são o de nada conseguir, de errar, de sentir a frustração de chegar a lado nenhum, de sair dececionado; mas também há a travessia que permite concretizar, que abre ao espanto de ser capaz, de criar, embora os erros, embora os acidentes, embora os acasos. Nada disto mudará em 2030 porque será necessário aprender a utilizar tanto as máquinas como as suas aplicações e a pensar a sua aplicabilidade em contextos inesperados e estendendo limites e propósitos iniciais, enfim: experimentando em tempo real. Tal como outrora e como hoje, será a imaginação e a inventividade com que se usam estes e outros meios que gerará obra. O uso da criatividade deriva da possibilidade de vivenciar, de experimentar, de aprender com essa experiência e compreendê-la como potência criativa. Esta experiência será garantida pela Universidade, no espaço da aula como lugar de ensaio ou de treino que leva à criação, não só porque potência a criatividade, excita a imaginação, conduz à inventividade, sem constrangimentos, sem tabus, sem preconceitos. Os meios tecnológicos (arcaicos ou actuais, ou ainda futuristas) são necessários à produção de obra. Esta obra não só é testemunho do que é possível fazer com eles (o que foi pre-determinado por quem inventou estes meios) como vem potenciar outras soluções. É a obra que dá forma às possibilidades que as aplicações tecnológicas propõem e pre-determinam (tal como o tubo de tinta contem, em potência, uma pintura) mas, neste movimento, mostra não só quais são as implicações intrínsecas e manifestas pela competência de quem faz, como abre ao (im-) possível, quer dizer, àquilo que transcende as intenções de quem inventou a aplicação. Porque na utilização dos dispositivos, está em aberto a sua experimentação criativa, a articulação real das possibilidades de fazer e a sua transcendência. Esta aliança entre tekhnê e poïesis não é um simples procedimento, mas a força criativa originária – que origina, por exemplo, a pintura – uma força da ordem da natura naturans. A tekhnê possibilita trazer para diante de, permite mostrar porque oferece um desvelamento, porque concretiza.
“A tekhnê, certamente, comanda – e distingue – uma certa divisão (do trabalho) dos sentidos, pelo menos na sua distinção a que correspondem materiais e instrumentos diferentes consoante a especialização, rudimentares ou subtis, inatos ou adquiridos, do corpo – que existe incontestavelmente (…). Mas a tekhnê, propriamente não é divisível” (LABARTHE, 2009, 238).
Assim, aquele que faz – que aplica a tekhnê –, igualmente, é aquele que instaura a poïesis (do grego, “criação de um campo poético”), aquele que problematiza as opções, as intenções, os a priori e as resoluções plásticas implicadas e exigidas pelo media eleitos (sejam arcaicos ou tecnológicos). É aquele que explora, enquanto experiência, os métodos e os resultados, para originar qualquer coisa surpreendente, porque inesperada ou excepcional. Acredito que, em 2030, a educação pela arte e, por consequência, o ensino das Belas-artes na Universidade, estarão na fundação destas pessoas, serão a sua plataforma de incubação, desenvolvimento e projecção.
CONCLUSÃO
Para pensar o ensino das Belas-artes em 2030 foi-me necessário ir ao passado e agir como um adivinho da Grécia antiga. Mas, em vez de olhar para o céu, concentrei-me no ecrã do computador, a pesquisar no Google, a escrever este texto como resposta, actualizando, deste modo, uma actividade arcaica.
Os quatro cenários que me surgiram pulverizam as possibilidades de como será ensinar no futuro: desde o uso extensivo e expressivo dos dispositivos tecnológicos para criar situações da ordem da ficção-científica, à aniquilação do ensino artístico, passando por situações intermédias, ainda comprometidas com as actuais práticas que as tradições e a própria condição humana (percepção e cognição) impõem. Paradoxalmente, a lentidão – que se deve a uma resistência ao novo, que se deve a hábitos entranhados, que se deve às estruturas e às instituições na sua demora a adapatar-se e actualizar-se – permite, ao mesmo tempo, um fascínio pela velocidade e pelo imediato que, através dos recursos da tecnologia, abre à novidade da experiência estética, da produção inédita de obra (outros meios produzem outros resultados). O novo é sempre recebido com entusiasmo e o veículo desta novidade é, frequentemente, o dispositivo eletrónico, digital – brinquedos com wi-fi, com apps que mostram o mundo porque têm ecrãs e, através deles, põem-nos em contacto (visual, sonoro) com o longínquo, com o ausente, à distância da vontade, do desejo.
No ensino, seja à distância, seja in loco, o som e a imagem – e com ela a imaginação e a criação de imaginários, continuará o caminho para se tornar predominante (em detrimento da linguagem) e, por isso, no futuro, aprender sobre o que é uma imagem será reconhecido como absolutamente fundamental. Embora as imagens possam ter inúmeros modos e meios de tomar forma, são os artistas quem melhor sabe (e saberá) gerá-las. Num futuro radical mas profícuo para as artes, será da responsabilidade dos artistas a criação de imaginários: através de cenários imersivos como os simulacros 3D com sensações reais, no espaço público, na reconfiguração de cidades bio-inteligentes, na imagem que cada app necessita para se dar a conhecer. Por isso, a sua formação será igualmente importante e terá um lugar nas instituições de ensino, com professores, instalações e equipamentos que permitirão ensaiar experiências em condições técnicas fabulosas com resultados extraordinários. Através do teletransporte individual, o território será sem fronteiras, sem distância, e por isso, os alunos irão circular entre escolas, entre países, entre culturas, para se tornarem não só pessoas abertas, tolerantes e responsáveis como criadores inteligentes e informados, com mais mundo e, por isso, com uma visão transcendente que permitirá criações impensáveis hoje. Só faltam doze anos.
Imagem topo: auto-retrato realizado no âmbito da unidade curricular Desenho IV, Licenciatura de Artes Visuais em 2018